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Jornalismo e Saúde


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A saúde na mídia: uma visão crítica

Wilson da Costa Bueno*

     A experiência brasileira de comunicação para a saúde, apoiada na ação dos meios de comunicação de massa, esbarra ainda em alguns vícios e preconceitos. A mídia tem transformado o universo da doença (e a sua cura) em um grande espetáculo, movido por lances mágicos ou sensacionais, onde prevalecem o mito da técnica onipotente, a ideologia da novidade e o conflito maniqueísta do bem contra o mal.
     A experiência da comunicação para a saúde, em nosso País, é, fundamentalmente, a legitimação de um viés ideológico que resulta da conjugação de duas realidades: a do ensino e da prática da Medicina e a do processo de divulgação cientifica. Ambas, estão indissoluvelmente ligadas a interesses e compromissos que se situam fora delas, mas que lhes imprimem um perfil singular, definido por atributos, como a fragmentação, o preconceito, o reducionismo, a mitificação e o corporativismo.
     Duas grandes possibilidades caracterizam a prática da comunicação para a saúde, com a mediação dos meios de comunicação de massa:

1) campanhas de âmbito nacional e
2) veiculação de informações sobre Medicina/Saúde, em reportagens, colunas ou artigos inseridos nos jornais, revistas, rádio e televisão. Estas duas possibilidades encerram gargalos e distorções, exatamente porque estão umbilicalmente vinculadas a fatores que lhes fogem ao controle: a proposta editorial dos veículos, a atuação corporativa da chamada ordem médica, a ingenuidade e o despreparo de jornalistas e comunicadores em geral, a omissão dos governantes e o lobby da indústria da saúde.

     A prioridade, neste momento, é examinar a segunda possibilidade e, por este motivo, deixaremos de analisar a eficácia das campanhas no campo da saúde. Não podemos deixar de registrar, no entanto, que elas exprimem o caráter precário da polítíca de saúde em nosso País e que vivem a reboque de situações emergenciais (luta contra a Aids, as drogas) ou de oportunidade (campanhas de vacinação), sem um planejamento adequado. Além disso, não se inserem numa proposta mais abrangente de educação para a saúde ou de prevenção, assumindo um caráter antes político (prá não dizer demagógico) e propagandístico que pedagógico. A "campanha do Bráulio", que foi descontinuada tendo em vista o recuo do governo (os Bráulios se confessaram ofendidos), é um exemplo gritante do amadorismo que cerca o planejamento de tais campanhas. Na verdade, o erro está em imaginar que mensagens de massa possam produzir alterações profundas de comportamento, notadamente entre pessoas já estruturadas, e que possam substituir ações permanentes e mais sólidas, que deveriam ser levadas a cabo em outros espaços de convivência (a família, a escola, os clubes esportivos etc).
     Podemos definir a prática brasileira de comunicação para a saúde a partir de uma série de parâmetros, como a descontextualização, a centralização do foco na doença, a visão preconceituosa das terapias e medicinas alternativas, a ideologia da tecnificação, a legitimação do discurso da competência e a espetacularização da cobertura na área médica, entre outros.

     A fragmentação

     A divulgação científica pauta-se pela fragmentação, ou seja, as notícias e reportagens fluem na mídia como peças de um quebra-cabeça que nunca se completa. O leitor é bombardeado por um sem número de informações, diluídas ao longo das várias edições, que, se pudessem ser vistas conjuntamente, indicariam, de imediato, contradições insanáveis. O cidadão, que consome este material informativo, fica, invariavelmente preso num conjunto formidável de dilemas: afinal de contas, o vinho faz bem ou mal para o coração, tomar vitaminas ajuda a retardar o envelhecimento ou induz a doenças, o fumante passivo corre ou não risco de câncer, qual a verdadeira eficácia do coquetel de drogas para inibir a ação devastadora do HIV e assim por diante. Isso ocorre menos porque a ciência ainda não deu resposta confiável a estas questões, mas porque a mídia oscila em função de espasmos de divulgação, pouco preocupada em avaliar a qualidade das informações que chegam a ela ou de verificar o interesse das fontes que as produzem. Esta fragmentação descontextualiza a relação entre medicina e poder e impede que se vislumbre a informação pela sua inspiração nitidamente mercadológica. A fragmentação se viabiliza na expressão maniqueísta da luta do bem (a indústria da saúde, o especialista, a tecnologia a serviço da ordem médica) contra o mal (o vírus, a bactéria, a deficiência do patrimônio genético de determinados indivíduos etc). Este processo de descontextualização não é exclusivo da comunicação para a saúde, mas é notada, genericamente, na comunicação científica como um todo.

     O foco na doença

     As matérias de saúde concentram o foco na doença, tentando entendê-la sob todas as formas e assumem, quase sempre, um caráter fatalista (tal paciente deu um azar danado ao "pegar" tal moléstia ou estava determinado geneticamente a contraí-la algum dia). Desviam, desta forma, a atenção da ausência de políticas de saúde, deixando de entender o processo pelo qual se criam condições para a emergência de epidemias ou para o retorno de velhas enfermidades. Elegem os microorganismos como vilões (cada vez mais resistentes ao homem!), sem indicar que a causa maior das moléstias e patologias é a precária infra-estrutura de atendimento, a ausência de um programa de saneamento básico, o despreparo de profissionais, a mercantilização da Medicina, o analfabetismo e a miséria da população.
     Ao concentrarem o foco na doença, estas matérias não permitem a elaboração de uma proposta informativa que privilegie a prevenção, a educação para a saúde e o debate sobre as condições econômicas e sócio-culturais que podem conduzir a uma melhor qualidade de vida.

     A visão preconceituosa das terapias alternativas

     Mercê da pressão dos representantes da Medicina tradicional, que se constituem na maioria esmagadora de suas fontes, a mídia ignora (ou coloca sob suspeita) as terapias e Medicinas alternativas (acupuntura, homeopatia, medicina oriental). Com raríssimas exceções, fecha as portas para as novas possibilidades, apoiada na visão cientificista, que se apega a determinadas convicções ou paradigmas (o da onipotência da técnica, o da generosidade da classe médica, e mais recentemente do determinismo genético). Exclui, a priori, soluções que não se enquadram nas concepções ocidentais de doença e cura e do homem como um somatório de órgãos (pulmões, coração, rins etc) e aparelhos ou sistemas ( circulatório, digestivo etc), que podem ser compreendidos pela perspectiva multifacetada das especialidades médicas. Não admite o ser humano integral, não faz concessões a demandas que se situam fora do campo da técnica e da ciência, ridiculariza as emoções como sintoma da fragilidade humana e encara a opção não materialista como desvio da normalidade. A cura, admite a mídia, repercutindo a Medicina convencional, se restringe à ação da competência médica e da indústria que lhe dá suporte.

     A notícia como espetáculo

     Mais do que em outro campo de cobertura, a Medicina e a saúde se prestam à produção de matérias (e manchetes) espetaculosas, prometendo curas, desvendendo os mistérios do corpo e da mente e propagando medicamentos e equipamentos que integram o aparato tecnológico à disposição dos médicos. Em muitos casos, a informação se confunde com releases emitidos pela indústria da saúde, sem que o receptor (leitor, radiouvinte ou telespectador) seja avisado dos interesses do produtor da informação.
     Resultados parciais são generalizados com o objetivo de despertar a atenção, criando uma falsa idéia de que a Medicina se move em função de pesquisadores ou cientistas geniais, como se a ciência e a tecnologia modernas pudessem florescer à margem do grande capital. O próprio noticiário que cerca a divulgação de novas descobertas (em particular o do Prêmio Nobel de Medicina) acaba sendo contaminado por esta visão romântica do processo de produção científica, identificado como uma inspiração e realização individuais.
     A "espetacularização" da notícia de saúde fantasia a realidade e, ao invés de promover a confiança no talento humano, alimenta, a médio prazo, a desesperança, ao mesmo tempo que desinforma, estimula o consumo inconsequente de medicamentos e desarma os espíritos para a importância da prevenção.

     O mito da técnica onipotente

     As matérias sobre saúde, com frequência, encaminham-se para a apologia da big science, para a contemplação de remédios e equipamentos milagrosos, para vender a idéia da onipotência da técnica. Mais recentemente, em virtude da euforia que cerca a introdução e o desenvolvimento de novas tecnologias, têm distorcido o conceito de atendimento médico em prol da "virtualização "da Medicina, num processo que se define, no mínimo, como elitista. O conceito de consultório eletrônico (via Internet), de hospitais virtuais e de uso intensivo do computador para detectar ou prever situações é retirado de seu verdadeiro contexto para ressurgir, nos telejornais, nos "Fantásticos" e nas capas das revistas, como a nova panacéia para os males do corpo. O próprio médico acaba perdendo seu espaço, substituído pelo equipamento que tudo pode e tudo prevê.
     Esta valorização do aparato tecnológico tem como contrapartida o desgaste da imagem do profissional de saúde, pressionado pelas condições absolutamente desfavoráveis do ambiente de atendimento e de assistência (situação caótica dos hospitais e pronto-socorros) e pela proliferação de iniciativas em direção à mercantilização da Medicina. A divulgação espetaculosa dos casos singulares de erro médico reposiciona o profissional, antes valorizado, para um patamar inferior e abre espaço seja para generalizações perigosas, seja para o surgimento de novos gurus (os curandeiros da nova era).

     A legitimação do discurso da competência

     Finalmente, é preciso registrar, na prática da comunicação para a saúde, o que Marilena Chauí designou de "discurso da competência". O profissional de saúde, o especialista, arvora-se como a única fonte capaz e com legitimidade para expressar conceitos relacionados com esta área, descartando a conveniência de outras falas. Para tanto, cerca-se de uma visão corporativista e de um discurso técnico que, sobretudo, funciona como um divisor de fronteiras: quem o domina, faz parte do clã; aqueles que não o manipulam não têm o aval da tribo.
     Esta situação serve tanto para identificar as fontes na comunicação para a saúde (só merecem crédito aqueles que comungam o "idioma médico") como para definir os papéis do especialista e do paciente. Ela estabelece um relacionamento verticalizado, não democrático, e exclui o saber popular e a experiência transmitida pelas gerações ao longo do tempo, por não estarem revestidos da lógica científica e não terem obtido a aprovação da Academia.
     Isso não significa dizer que a classe médica não deve ser vista como a depositária legítima deste conhecimento técnico e o principal agente de seu desenvolvimento, mas que a Medicina e a saúde não devem constituir-se em preocupação e em espaço de reflexão apenas para os profissionais desta área.
     A manipulação genética, a bioética, tem mostrado que o que ocorre no campo da biologia e da intervenção na vida humana diz respeito à sociedade humana como um todo e que a ética que disciplina uma determinada área de competência não pode ficar à mercê dos interesses e da visão parcial de um único segmento.
     A comunicação para a saúde precisa reinterpretar as relações entre poder e saúde, redimensionando a amplitude de sua análise, para incluir fatores que se localizam externamente à dualidade médico x paciente ou médico x meios de comunicação.
     O maniqueísmo bem x mal ou saúde x doença constitui-se numa fórmula simplista que têm mascarado interesses e compromissos. A reversão do quadro atual,definido pela escalada da mercantilização na Medicina e,consequentemente, a revalorização do bom profissional de saúde e do conhecimento médico, passam pela ruptura dos velhos paradigmas. A comunicação para a saúde, que se pretenda democrática, transparente, e identificada com os interesses da maioria, precisa construir um novo cenário. Precisa admitir a pertinência de novas falas, de um saber plural, como bem define Cremilda Medina, professora da ECA/USP.

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*Wilson da Costa Bueno é jornalista, professor do programa de pós-graduação em Comunicação Social da UMESP, professor de jornalismo da USP e diretor da Comtexto Comunicação e Pesquisa. Na USP, responde pela disciplina Jornalismo e Saúde: a experiência brasileira.

 
 
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