Jornalismo e Saúde


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O lobby na mídia pode fazer mal pra saúde

Wilson da Costa Bueno*

  A mídia tem se prestado, sem qualquer espírito crítico, para inúmeras ações de lobby desencadeadas por empresas e segmentos industriais que visam garantir privilégios, aumentar seus lucros e que, inclusive, quando necessário, se dispõem a chantagear a sociedade.

Recentemente, a Novartis, uma poderosa indústria farmacêutica suíça, tem comparecido na mídia com ameaças não veladas de desviar do Brasil para o exterior uma nova fábrica para produção de vacinas contra meningite. Em entrevista ao jornal Valor Econômico, de 30 de outubro de 2007, o presidente do grupo, Daniel Vasella, reitera, e não apenas nas entrelinhas, que o Brasil teria que disputar com outros países (Cingapura, China etc) a nova fábrica. Na oportunidade, segundo afirmava o jornal, "a possibilidade de o Brasil obter esse investimento está afetada pela posição do país sobre queda de patentes". Uma semana depois (4/11/2007), o presidente da subsidiária do laboratório suíço,Alexander Triebnnigg, em entrevista à Folha de S. Paulo, desconversou, foi reticente, valeu-se de subterfúgios, e negou, sem negar, a importância da questão das patentes em uma futura decisão da empresa. Evidenciou, além disso, toda a sua arrogância. "Antes, eu vendia o Brasil. Agora, defendo o País. É totalmente diferente de vender",

Na prática, a Novartis deseja, como toda empresa comprometida prioritariamente com o lucro para os seus acionistas, obter vantagens maiores para os seus negócios e, acintosamente, faz o seu jogo, buscando pressionar o Governo e a sociedade para que decisões sejam tomadas a seu favor. No fundo, a Novartis quer continuar no Brasil (há muitos lugares onde a indústria teria tantas vantagens?) e, como toda e qualquer corporação global, não toma decisões que afetam o seu bolso apenas por questões ideológicas ou políticas. Pretende garantir o seu lucro pela diminuição do imposto que o governo cobra dos medicamentos (decisão que só seria saudável se o desconto fosse revertido para os consumidores) e negociar a implantação da fábrica sem correr o risco de que o Governo reduza o preço do Glivec, remédio contra o câncer. A Novartis quer também que a Conep - Comissão Nacional de Ética em Pesquisa agilize o processo de aprovação do seus protocolos de pesquisa, enfim deseja que o terreno onde pisa esteja bem azeitado para que o lucro seja elevado e venha rápido.

A imprensa precisa estar alerta para este discurso arrogante, em tom de chantagem (?) ou ameaça, e que tem como objetivo intimidar autoridades e a própria sociedade. Precisa ficar de olho aberto e estabelecer algumas conexões que são importantes, resgatar enfim a história recente das corporações que agem deste modo.

A Novartis (para refrescar a memória dos jornalistas e dos internautas) é a mesma empresa que há alguns anos viu-se envolvida no escândalo da BioAmazônia, um projeto que mereceu a atenção da mídia nacional, principalmente porque contra ele se insurgiu boa parte da comunidade científica brasileira. Há relatos contudentes na web sobre a tentativa da empresa suíça de avançar sobre a nossa biodiversidade. A transcrição de um depoimento do prof. Isaias Raw, um dos maiores pesquisadores brasileiros, pode ajudar a entender verdadeira intenção da empresa naquele episódio (http://www.sbq.org.br/publicacoes/beletronico/bienio2/boletim177.htm):

" Probem (agora denominada BioAmazônia) foi constituída com o propósito de desenvolver pesquisa científica na Amazônia, em colaboração com Universidades e Institutos de Pesquisa brasileiros, criando tecnologia que seria implantada na região amazônica, gerando empregos e divisas.
Lançou com a presença do vice-presidente Marco Maciel uma nova construção em Manaus, pagando passagens e estadias (inclusive a minha). Alardeou que dispunha de U$12 bilhões, o que talvez explique sua instalação na luxuosa Avenida Berrini, em São Paulo, acha razoável isolar, caracterizar e vender cepas de nossas bactérias a 100 FF (cerca de R$100,00) até o limite máximo de R$1 milhão, cifra inferior ao custo de manter o escritório em SP.
A BioAmazônia assina acordo onde a Novartis, tem direito exclusivo de requerer e manter a proteção de patente, para fazer, produzir, usar e vender Compostos Diretos e Compostos Derivados no Território (que o contrato define como Mundo!)…
Par isto oferece, e a BioAmazônia, aceita, 500 mil francos suíços (1 FS é aproximadamente 1 Real), quando a Novartis declarar que está fazendo um estudo clínico com um produto derivado da biodiversidade brasileira e mais 2.250.000 FS até o lançamento do produto.
No meio do tempo a Novartis nos ensinará a ser seus técnicos, colhendo microorganismos, fermentando e analisando a presença de produtos interessantes. Depois teríamos a importante função de mandar os extratos e compostos isolados e finalmente mandar as cepas. Por apenas 100 FS por cepa, a BioAmazônia terá que montar uma máquina para mandar 10 mil culturas para a Novartis!"

É possível resgatar muitos outros documentos sobre o projeto. Se tiver um tempinho, leia também na internet uma análise do advogado Antonio Fernando Pinheiro Pedro -
Biodiversidade Brasileira e os contratos de Bioprospecção ( O caso Bioamazônia-Novartis) ou ainda o artigo Curupira x Biopirataria, de Carlos Alfredo Joly, publicado na prestigiada Revista Pesquisa Fapesp ( junho de 2000).

Como a gente diz no interior, estamos diante de uma briga de cachorro grande e enormes interesses. Interesses que podem ser conferidos em matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo também deste domingo (04/11/2007) sob o título Médico receita em troca de presente e com o subtítulo Relatório Internacional mostra que laboratórios farmacêuticos oferecem de tudo a profissionais do 3º Mundo. Dentre as várias empresas farmacêuticas citadas na reportagem está lá também a Novartis, bem acompanhada por suas inúmeras irmãs que integram a chamada Big Pharma.

Acompanhemos a reportagem do Estadão por mais um pedacinho: "Richard Lloyd, diretor-geral da CI - Consumers International, federação de grupos de consumidores de 113 países, com sede em Londres, pediu a proibição de qualquer premiação a médicos: A indústria farmacêutica vê o mundo em desenvolvimento como uma oportunidade de trilhões de dólares para garantirem os lucros nos próximos 40 anos, disse."

Os jornalistas deveriam ser menos ingênuos quando se dispõem a reproduzir o discurso de determinadas corporações, evitando a armadilha do monofonte ou fonte única. Seria mais razoável se a "reportagem local" da Folha de S. Paulo, em vez de perguntar ao presidente da Novartis brasileira sobre a BioAmazônia - ele disse que foi um grande mal entendido (?) -, tivesse utilizado a necessária capacidade investigativa da mídia para pelo menos descrever aos seus leitores o que realmente havia acontecido com este projeto, felizmente abortado pelo Governo, após a pressão da comunidade.

O lobby, a pressão e as chantagens (?) são comuns na mídia e as montadoras, por exemplo, volta e meia, lançam mão dos mesmos subterfúgios quando resolvem abrir novas fábricas (provocam leilão entre governadores para não pagarem impostos) ou se queixam do dólar baixo (ao mesmo tempo em que batem recordes de vendas). São elas, e não as microempresas, que conseguem redução de impostos quando as vendas diminuem (o que é normal em qualquer negócio) após a ameaça de demissão de funcionários.

Muitos destes segmentos industriais têm sido aquinhoados com benesses do governo (é sempre bom verificar se as pessoas que ocupam os cargos no BNDES, por exemplo, têm ou tiveram vínculo com os grupos que são favorecidos com empréstimos generosos) e pouco têm, ao longo do tempo, contribuído efetivamente com a expansão dos empregos. Os pequenos negócios, como salões de cabelereiros e "pet shops" , segundo IBGE, têm ofertado mais empregos do que a indústria farmacêutica, as montadores e mesmo os bancos.

Seria interessante também que a imprensa revelasse o montante de dinheiro que retorna aos países de origem destas empresas em forma de royalties ou dividendos para que a população não fique imaginando que temos corporações deste porte apenas fazendo caridade por aqui.

O Brasil tem o direito de defender os seus interesses, que devem sobrepor-se aos interesses de grupos privados. Não precisamos de ameaças ou mesmo de chantagens e muito menos da arrogância de executivos comprometidos apenas com os acionistas e com as suas metas particulares.

A imprensa não pode continuar sendo moleque de recado. Está lançado o desafio: por que, se o País é tão hostil, algumas empresas não se mudam para bem longe? Se é por falta de adeus, bye, bye.

Diante das ameaças e lobbies, a imprensa tem que assumir que a melhor saída é investigação, boas informações e um pouquinho de coragem. Determinadas empresas costumam pressionar jornalistas e até pesquisadores , já que têm horror a vozes discordantes: elas podem comprometer seus lucros e desmascarar suas estratégias. Seria leviano dizer que assim age a Novartis (a ética manda não afirmar sem provas) mas os tribunais estão repletos de processos de empresas poderosas e autoridades "autoritárias" contra jornalistas e é bom colocar a barba de molho. Faz bem para a saúde e para o bolso.

Em tempo , para quem tem tempo: faça uma consulta no Google usando as seguintes seguintes palavras-chave: Boicote contra a Novartis na Índia; Riscos do Cataflan e Voltaren; Boicote contra genéricos no Brasil; Problemas com o Prexige. Se você lê em inglês, tente ainda Novartis problems e encontrará um montão de referências relacionadas sobretudo a medicamentos da empresa. Pelo que se pode ver, a Conep deve continuar com o olho bem aberto , a imprensa e a sociedade, idem!

Em tempo 2: O título da reportagem do Valor Econômico - Brasil perde fábrica da Novartis - foi mais realista do que o rei porque a decisão ainda não foi tomada. Talvez a idéia tenha sido mesmo contribuir para o lobby, coisa feia não?.

Em tempo 3: As empresas têm o direito de fazer o seu lobby, que , se legítimo, não se confunde com corrupção ou coisa equivalente. Os cidadãos e os jornalistas têm o mesmo direito de reagir a ele. Esperamos que o governo brasileiro não ceda a pressões ou chantagens, vindas de adversários ou aliados.

Em tempo 4: Depois de publicado este artigo originalmente no Portal Imprensa, a Novartis finalmente anunciou que iria instalar a sua fábrica no Brasil. Não se sabe, na prática, as benesses que recebeu para ficar por aqui, mas não há dúvida de que o pessoal de Brasília cedeu, pelo menos em parte, ao lobby da Novartis. A imprensa é que precisa abrir o olho com os grandes interesses que rondam a saúde brasileira (que, com ou sem CPMF, continua uma calamidade!).

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*Wilson da Costa Bueno é jornalista, professor do programa de pós-graduação em Comunicação Social da UMESP, professor de jornalismo da USP e diretor da Comtexto Comunicação e Pesquisa. Na USP, responde pela disciplina Jornalismo e Saúde: a experiência brasileira.

 
 
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