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A
Veiculação de Informações Sobre Saúde
como Instrumento na Construção da Cidadania: um
Estudo em Jornais de Porto Alegre - RS
Elisa Kopplin Ferraretto*
Valdir José Morigi*
Resumo
A
cobertura da área da saúde pela imprensa pode ser um instrumento
importante para auxiliar os cidadãos na construção e no fortalecimento
da cidadania. O acesso da população às informações sobre saúde
e outros direitos amplia os conhecimentos, contribuindo para uma
melhor qualidade de vida. O estudo procura mostrar, a partir da
análise de dois jornais diários de Porto Alegre, Rio Grande do
Sul, como se caracterizam as coberturas sobre saúde e como o cidadão
se insere nelas. Constatou-se que as matérias da imprensa da capital
gaúcha possuem características como limitação, dispersão, fragmentação
e descontextualização das informações. Também foi observado que,
na cobertura, o cidadão aparece tendo um papel secundário.
Palavras-Chave:
Imprensa; Saúde; Jornalismo; Cidadania.
1.
Introdução
A
divulgação, na imprensa escrita, de matérias sobre saúde humana
pode assumir um papel relevante no acesso dos cidadãos aos seus
direitos. Em primeiro lugar, porque, através de uma ampla disseminação
de informações sobre prevenção, diagnóstico e terapêutica, é capaz
de auxiliar o indivíduo a administrar seu maior patrimônio: a
vida. Em segundo, porque tem condições de proporcionar a cada
um que conheça melhor os recursos científicos, tecnológicos, estruturais
e legais de que pode dispor para preservar o seu bem-estar físico
e mental.
Ao
atuarem dessa forma, os jornais estariam favorecendo, antes de
mais nada, o próprio direito à informação e, através dele, instrumentalizando
o cidadão para o acesso ao direito à saúde. Considerando que esse
comportamento representa uma postura ética e socialmente responsável
da imprensa, o presente estudo dedicou-se a analisar as informações
veiculadas nas coberturas em saúde feitas por diários de Porto
Alegre, para, a partir daí, identificar suas características.
2.
Cidadania: os direitos instituídos e a realidade
O
conceito de cidadania possui várias abordagens (1). Neste estudo,
partiu-se da concepção clássica de Marshall, que propõe uma divisão
em três elementos fundamentais: direitos civis (como liberdade
de ir e vir, liberdade de imprensa, direito à propriedade e à
justiça), políticos (direito de participar no exercício do poder
político) e sociais. Nesta última categoria, está incluído "[.
. .] tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico
e segurança ao direito de participar, por completo, na herança
social e levar a vida de um ser civilizado". (MARSHALL, 1967,
p. 63).
O
acesso à saúde, assim como às informações sobre ela, fazem parte,
portanto, dos direitos sociais, constituindo-se em fator inerente
à condição de cidadania. Tal direito está previsto em variadas
instâncias, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos
até diversas disposições legais, como exemplificado, com foco
na realidade brasileira, no quadro a seguir:
Declaração Universal dos Direitos
Humanos |
Toda
a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para
lhe assegurar a saúde e o bem-estar, principalmente quanto
à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência
médica e ainda quando aos serviços sociais necessários. |
Lei 8.080 |
A
saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo
o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno
exercício. |
Código de Defesa do Consumidor |
É
direito básico a proteção da vida, saúde e segurança contra
os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos
e serviços considerados perigosos ou nocivos. |
Estatuto do Idoso |
É
obrigação do Estado garantir à pessoa idosa a proteção
à vida e à saúde, mediante efetivação de políticas sociais
públicas que permitam um envelhecimento saudável e em
condições de dignidade. |
Estatuto da Criança e do Adolescente |
"A
criança e o adolescente têm direito à proteção, à vida
e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais
públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento
sadio e harmonioso, em condições dignas de existência." |
Quadro 1 - Algumas regulamentações sobre os
direitos à saúde
Apesar
desse amplo conjunto de direitos previstos, os indicadores sociais
demonstram que, no Brasil, um grande número de pessoas adoece
e morre porque outros direitos sociais básicos, como o acesso
a condições adequadas de nutrição, higiene e assistência médica,
são desrespeitados. Ao mesmo tempo, constata-se uma elevada incidência
de patologias tais como doenças infecciosas e parasitárias,
dos aparelhos circulatório e respiratório e diversos tipos de
câncer que poderiam ser evitadas através da adoção de medidas
preventivas.
Daí
depreende-se que, se as más condições socioeconômicas são responsáveis,
em grande parte, pelas carências de saúde da população, também
a circulação de informações ocupa papel decisivo nesse quadro.
Um cidadão bem-informado sobre as prerrogativas legais que o beneficiam
e os serviços que o poder público tem o dever de disponibilizar
possuiria mais condições de exigir o cumprimento de seus direitos.
Este mesmo cidadão, na medida em que tivesse acesso a conhecimentos
sobre prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças, estaria
apto a cuidar melhor de si mesmo e a reproduzir essas informações
à coletividade em que vive. Se isso não ocorre, é porque também
não está sendo exercido, em sua plenitude, o direito à informação,
que Gentilli (2002, p. 49) classifica como "uma porta de
acesso a outros direitos".
Para
Maurizi (2001), um dos elementos que contribui diretamente para
o desenvolvimento da cidadania é "[. . .] o acesso às informações
que as pessoas possam ter, que sirvam como suporte para a tomada
de decisões sobre os cursos de ação que estas queiram seguir".
A Unesco define informação como um bem público e social (apud
Peruzzo, 2002, p. 75) e a Organização Pan-americana de Saúde (OPAS,
2004) destaca a responsabilidade da comunicação:
Para
formular políticas públicas saudáveis, os setores da agricultura,
comércio, educação, indústria e comunicação devem levar em consideração
a saúde como um fator essencial. Estes setores deveriam ser responsabilizados
pelas conseqüências de suas decisões políticas sobre a saúde da
população, porque o crescimento econômico, por si só, não contribui
para a melhoria das condições de saúde.
Embora
a circulação de informações possa se dar em diferentes níveis
- na família, nos núcleos comunitários, nas relações médico-paciente,
nos serviços de saúde e na escola, por exemplo - , é nos meios
de comunicação que tem condições de atingir, simultaneamente,
um grande número de pessoas. Como menciona Bueno (2003a):
A
imprensa pode provocar, indiretamente, mudanças nos comportamentos
individuais e sociais [. . .], seu papel é importante para manter
viva a memória das pessoas sobre assuntos da saúde e tornar aplicáveis
os conhecimentos teóricos adquiridos por outros meios.
No
mesmo sentido, Martini (2000, p. 15, p. 22) ressalta que o jornalismo
"[. . .] produz as notícias que constroem uma parte da realidade
social e que possibilitam aos indivíduos o conhecimento do mundo
a que não podem aceder de maneira direta". Para o autor,
"[. . .] a informação permite aos indivíduos conhecer-se
melhor e conhecer seu entorno, organizar sua vida no âmbito privado
e participar na vida pública". Por sua vez, Muñoz-Torres
(2002, p. 226) afirma que "[. . .] a narração tem certo caráter
utilitário: serve para obter dados que façam possível ou facilitem
a árdua tarefa de decidir; em uma palavra, que ajudem a viver".
Ou, como destaca Sabbatini (2004), a informação sobre saúde é
fundamental para o cidadão:
[.
. .] pois torna possível a assim chamada decisão bem-informada,
ou consentimento bem-informado, tais como saber quando
procurar um profissional de saúde, decidir vacinar os filhos,
seguir hábitos saudáveis e abandonar hábitos deletérios para a
saúde (como parar de fumar), concordar com um tratamento médico
prescrito, obedecer rigorosamente uma receita médica etc. É imprescindível
que as pessoas participem nas decisões médicas sobre sua própria
saúde, sabendo, inclusive, discriminar quando a conduta do profissional
pode estar errada, falha ou omissa.
Para
se efetivarem como instrumentos de consolidação da cidadania através
da cobertura da área da saúde, aos meios de comunicação caberia
uma múltipla abordagem do tema. Poderiam fazer menção a direitos
existentes, acompanhar seu cumprimento e denunciar distorções;
informar sobre serviços públicos, o que oferecem, quais as formas
de acessá-los e em que desrespeitam direitos; e tornar acessíveis
informações e orientações sobre prevenção, diagnóstico e tratamento
de doenças. Estariam aptos a servir, ainda, como um meio de desabafo
e reivindicação para o cidadão que, descontente com o atendimento
recebido ou negado em um serviço, encontraria neles
um canal para registrar suas queixas e vê-las transformadas em
assunto de domínio público, tendo como fim último não a resolução
do caso específico, mas o conhecimento e a correção de irregularidades
que também atingem toda a coletividade. Em resumo, seria preciso
que os meios de comunicação disponibilizassem aos cidadãos o fácil
e permanente acesso a informações de qualidade. Sobre isso, duas
observações são necessárias.
Em
primeiro lugar, quanto ao acesso, cabe lembrar que os jornais,
como produtores de sentido simbólico, exigem o domínio de um código
lingüístico a palavra escrita para que sejam consumidos.
Ao mesmo tempo, sua compra requer disponibilidade financeira.
Contrapondo estes pré-requisitos com a realidade brasileira, em
que há um grande percentual de cidadãos com baixo nível de escolaridade
ou analfabetos, e também com reduzido poder aquisitivo, conclui-se
que não se está analisando canais capazes de atingir toda a população.
Ainda assim, uma pesquisa do Marplan sobre o perfil dos leitores
de jornais no Brasil (Associação Nacional dos Jornais, 2004) mostra
que o meio jornal tem uma boa penetração, principalmente, nas
classes B e C, estando presente, também, nos segmentos A e D/E,
o que reforça, apesar de tudo, sua condição potencial como disseminador
de informações a um universo relativamente amplo e variado de
pessoas.
A
segunda observação diz respeito à qualidade das informações veiculadas
pelos meios de comunicação ao conjunto da população. Esta característica
está relacionada, entre outros aspectos, à forma de exposição
do conteúdo e sua compreensibilidade junto a diferentes tipos
de leitores. Segundo Morigi e Rosa (2004, p. 6):
Cada
campo social possui suas normas e regras próprias contratos
para seus discursos, que permitem ao seu público uma compreensão
das mensagens. Entretanto, os múltiplos discursos das diversas
instituições sociais formam linguagens técnicas nem sempre acessíveis
e decodificáveis pelos cidadãos. O campo midiático possui regras
e normas específicas, que rompem a ordem do campo de origem, para
a efetivação de uma nova ordem assimilada pela pluralidade da
opinião pública.
Neste
contexto, a questão também está relacionada à segmentação dos
jornais, como frutos, que são, de empresas com finalidade comercial.
Como destaca Dahlgren (1997, p. 257):
Com
a adoção cada vez maior de uma lógica comercial, segundo se pode
observar, nos meios verifica-se uma progressiva divisão de seus
públicos sobre a base de suas características demográficas e de
uma avaliação de sua capacidade de consumo. O jornalismo de informação
se constrói a partir daí de maneiras diversas, segundo os diferentes
grupos a que se dirige e em função de estratégias de mercado.
A
avaliação da qualidade das informações envolve, sobretudo, considerações
sobre a postura ética das empresas e profissionais. Neste sentido,
Wisnik (1992, p. 327) enfatiza que os meios de comunicação são
uma forma de tomarmos contato com a realidade através de representações
e que toda representação da realidade recorta-a, fragmenta-a.
O jornalismo funciona, assim, como uma máquina de montar e desmontar
contextos. E o jornal concebido apenas como uma mercadoria dá
lugar à "[. . .] contínua dissipação do mundo em fragmentos,
que rejeita qualquer idéia de permanência, que desmente pela sua
própria materialidade toda transcendência e que centrifuga o sentido,
mesmo quando pretenda sustentar uma interpretação única dos fatos".
As
maneiras como a fragmentação e a descontextualização das informações
se manifestam podem ser verificadas em outros estudos que avaliaram
a cobertura de saúde. Bueno (2003b) aponta cinco aspectos predominantes:
a centralização do foco na doença, a visão preconceituosa das
terapias alternativas, a ideologia da tecnificação, a legitimação
do discurso da competência e a espetacularização da cobertura
na área médica. Em outro estudo (Bueno, 2003a), o autor verificou
que:
[.
. .] os temas só recebem tratamento mais detalhado, como fontes
diversas e menção a casos de exemplos, nos cadernos especiais
[. . .]. As matérias do noticiário em geral são curtas, têm poucas
(muitas vezes só uma) fontes de informação e, quando se trata
de divulgar estudos científicos, geralmente fazem referência a
pesquisas internacionais.
Cruz
Júnior (2004), que pesquisou as matérias de jornais do Espírito
Santo, identificou como principais problemas a ênfase no jornalismo
declaratório, a ausência de movimentos populares, ONGs e órgãos
de pesquisa capixabas, a dificuldade de diálogo entre jornalistas
e fontes e a falta de editorias próprias e repórteres especializados.
Por sua vez, Dines (2004) aponta o caráter efêmero da cobertura
em saúde, o foco na doença e não no doente, a falta de preparo
dos jornalistas para a abordagem da área, a influência dos modismos
e dos interesses da indústria farmacêutica, a espetacularização
da cobertura explorando a "hipocondria de doentes
reais ou imaginários" , o enfoque de assuntos com alto
poder de venda e o corporativismo que impede a presença, nas redações,
de "médicos-jornalistas".
Tudo
isso conduz à discussão sobre a ética da produção jornalística,
que, no entender de Wisnik, deve ser feita a partir da reflexão
sobre o poder que a imprensa tem de criar suas próprias realidades,
apresentadas ao como a realidade. Peixoto (1992, p. 318),
ao analisar o uso das imagens no jornalismo, conclui que se deveria
"[. . .] retratar o mundo como paisagem, deixá-lo se constituir
em horizonte. [. . .] Respeitar a estrutura, o tempo, a história
do lugar". Nessa visão, fazer uma cobertura ética sobre saúde
nos meios de comunicação seria oferecer aos cidadãos, através
do texto, a possibilidade do contexto, proporcionar que os dados
fossem expostos aos leitores sob pontos de vista multiplicados
e aparições plurais, transformando-se em informações de fato qualificadas,
capazes de serem claramente recebidas pelos cidadãos e incorporadas
ao seu cotidiano, de acordo com seus interesses e suas necessidades.
3.
Universo da pesquisa e metodologia
Zero Hora e Diário Gaúcho, os dois jornais
tomados para o estudo, pertencem ao mesmo grupo empresarial
a Rede Brasil Sul , mas possuem características diferentes
entre si, a começar pelo perfil de seus leitores (RBS, 2004).
Entre os consumidores de Zero Hora, a prevalência é das
classes B e C, enquanto no Diário Gaúcho sobressaem os
segmentos C, B e D/E. No primeiro, predominam os leitores com
ensino médio (41%), embora sejam significativas, também, as parcelas
detentoras do fundamental (34%) e superior (25%). No Diário
Gaúcho, 60% possuem instrução fundamental, enquanto 34% cursaram
o ensino médio e apenas 5%, o superior.
Os
dois periódicos têm projetos editoriais distintos. Zero Hora
possui uma trajetória de 40 anos e a proposta de ser um jornal
de referência. Na descrição de seu perfil, é apresentado como
"um dos jornais mais importantes e respeitados do país"
(Zero Hora, 2004). O Diário Gaúcho, com quatro anos de
existência, nasceu como uma publicação "popular", com
ênfase em áreas como variedades, notícias locais, cobertura policial
e esportes. É descrito como "um jornal direcionado ao público
popular da Grande Porto Alegre, que nesse mercado chega a 76%
da população" (Diário Gaúcho, 2004).
Para
o presente estudo, foram analisadas, durante o mês de março de
2004, todas as edições dos dois jornais. Nos gêneros informativo
e interpretativo, foi identificada a presença de sete categorias,
de acordo com o conteúdo das matérias - informações sobre saúde,
serviços de saúde, eventos e programas para a comunidade, voluntariado
e solidariedade, profissionais e empresas, curiosidades e problemas
de saúde de pessoas conhecidas - , totalizando 193 inserções.
Já no gênero opinativo, foram registradas 46 cartas de leitores,
além de quatro editoriais das empresas jornalísticas, dois artigos
assinados por especialistas e quatro manifestações de colunistas.
Dentro da proposta do presente estudo, que pretende analisar a
divulgação de informações sobre saúde, os direitos dos cidadãos
e os serviços a ele disponibilizados, o foco centrou-se nas duas
primeiras categorias, que abrangem o universo descrito no quadro
a seguir.
Categorias |
Descrição |
Inserções
em Zero Hora |
Inserções
no
Diário Gaúcho |
Informações
sobre saúde |
Matérias
sobre doenças, formas de prevenção, diagnóstico e tratamento,
incidência de problemas de saúde, pesquisas e avanços na área,
além de colunas fixas de dicas e orientações. |
7 matérias, a maioria
com notas ou pequenas notícias. |
11 matérias, a maioria
de extensão média a longa. |
4 edições do caderno semanal Vida,
com 8 páginas cada, mesclando reportagens extensas notas curtas. |
33 colunas de dicas
(Pergunte a Quem Sabe, 5; Dicas de Saúde, 3;
e Falando de Sexo, 25). |
31 edições da coluna de dicas Viva
Melhor, inseridas na editoria Geral. |
Serviços de saúde |
Políticas e programas públicos,
novos serviços ou melhorias dos existentes, fatos relacionados
a hospitais e postos e dificuldades de atendimento. |
50 matérias, a maioria delas na
forma de notas ou notícias curtas. |
23 matérias, a maioria com textos
de extensão média a longa. |
Quadro 2 Categorias analisadas
conforme inserção nos jornais
Para
identificar as características em comum deste universo, a fim
de estabelecer quais os traços gerais da cobertura em saúde nos
dois jornais e a maneira como ela se relaciona com a construção
e o fortalecimento da cidadania, foram considerados os dados quantitativos
referidos e, principalmente, os aspectos qualitativos da cobertura:
quais os temas enfocados e com que tipo de abordagem.
4.
As informações sobre saúde nos jornais de Porto Alegre
Um
dos focos de possibilidade de atuação dos jornais como instrumentos
de consolidação da cidadania na área da saúde é a divulgação de
direitos, serviços, políticas e programas públicos. Em relação
a esses elementos, observou-se o que segue.
Em
Zero Hora, é freqüente a abordagem de programas e políticas
públicos, mas geralmente em pequenas notas, sem aprofundamento
ou contextualização. Por exemplo, há diversas referências a problemas
envolvendo tentativas de modificações no sistema de internações
psiquiátricas, mas nenhuma reportagem mais ampla a respeito de
saúde mental e a mudança do conceito de atendimento nesta área.
O mesmo ocorre em relação à saúde da mulher: embora haja notas
sobre o lançamento de plano do Governo Federal para planejamento
familiar e de programa do Ministério da Saúde de combate à mortalidade
materna e uma notícia um pouco mais ampla sobre um programa da
Prefeitura de Porto Alegre para cuidados com a mãe e o bebê, é
possível detectar um tratamento fragmentando dessas questões,
sem que haja espaço para uma exposição e debate mais aprofundados
e inter-relacionados em torno delas. No Diário Gaúcho,
notícias com ênfase em políticas e programas não são tão freqüentes
e, quando aparecem, têm tratamento similar ao dado por Zero
Hora.
Em
relação à oferta de serviços de saúde, a forma de os acessar e
os problemas que os envolvem, em Zero Hora há o freqüente,
embora breve, relato de problemas pontuais, como greves, situações
de superlotação, fechamento de postos ou hospitais. Apenas em
uma ocasião foi realizada reportagem especial, intitulada "A
agonia dos hospitais gaúchos" (Zero Hora, 9 mar. 2004, p.
4-5). Outra reportagem, com duas páginas e chamada na capa do
jornal, versa sobre as elevadas despesas do estado com o fornecimento
de medicamentos especiais. A reprodução de informações sobre os
serviços de saúde existentes é rara, aparecendo apenas como complemento
de uma ou outra matéria do caderno semanal Vida. O maior
destaque, tanto em termos de quantidade de inserções quanto na
extensão das notícias, é dado para questões envolvendo regulamentação
de planos de saúde.
No
Diário Gaúcho, no qual é mais freqüente a referência aos
serviços de saúde existentes, indicando aos leitores onde procurar
assistência médica, receber orientações ou realizar exames gratuitos,
por exemplo. Isto ocorre tanto em notas com essa finalidade específica
quanto como complemento de matérias que tratam de prevenção e
tratamento de doenças. Da mesma forma, as denúncias sobre deficiências
no atendimento de hospitais e postos de saúde são comuns. Nestes
casos, o jornal apresenta relatos de casos específicos e dramatiza
a situação da vítima, realizando, através da denúncia, a mediação
entre os interesses do cidadão e o poder público, tomando para
si a função de órgãos que deveriam zelar pela assistência aos
direitos sociais da população. Aplica-se, a essa situação, a reflexão
de García-Canclini sobre os meios eletrônicos, que ajudaram a
estabelecer outras maneiras de se informar, conceber e exercer
os direitos: "Desiludido com as burocracias estatais, partidárias
e sindicais, o público recorre à rádio e à televisão para conseguir
o que as instituições cidadãs não proporcionam: serviços, justiça,
reparações ou simples atenção" (GARCÍA-CANCLINI, 1999, p.
50).
O
alvo das coberturas de todos esses temas é o cidadão. No entanto,
raramente ele é o sujeito do noticiário. Em Zero Hora,
suas manifestações aparecem em matérias sobre dificuldades específicas
para receber atendimento. Naquelas sobre problemas do sistema
de saúde, apenas eventualmente há falas da população, predominando
a exposição dos fatos pelo viés do discurso oficial, com estatísticas,
depoimentos de dirigentes de instituições e autoridades públicas.
Por exemplo, na reportagem antes citada sobre a crise nos hospitais
gaúchos, que prejudica milhares de pessoas, em duas páginas não
é incluída a manifestação de nenhum cidadão.
No
Diário Gaúcho, a inserção de opiniões dos cidadãos está
presente na maior parte das matérias desse tipo. Além disso, através
de determinadas seções, são criados espaços de intermediação,
incentivando as manifestações dos leitores, que geralmente reclamam
contra deficiências dos serviços de saúde. É o caso da coluna
Meu Jornal, na qual se observa, porém, que os nomes dos
remetentes não são citados, fazendo-se apenas referências a "um
leitor" ou "uma leitora".
O
segundo segmento em que os jornais podem mediar a cidadania refere-se
à disseminação de informações sobre a promoção da saúde. Neste
aspecto, no dia-a-dia Zero Hora possui pouco espaço para
a publicação de matérias sobre prevenção, diagnóstico e tratamento
de doenças. A única seção fixa, de segunda a domingo, é a coluna
Viva Melhor, inserida na editoria Geral, sem destaque
visual e disposta em páginas em que há diversas notas breves sobre
assuntos variados. Nessa coluna, é apresentada uma pergunta, respondida
por um especialista. O texto caracteriza-se por empregar, com
freqüência, uma linguagem técnica. Por exemplo, na edição de 18
de março (Zero Hora, p. 32), sob o título "Chupar o dedo",
faz-se a pergunta "O que é e quais as causas da sucção digital"
e a resposta inclui expressões como "hábito que compromete
as funções do sistema motor oral, da fala e do desenvolvimento
dos órgãos fonoarticulatórios".
Por
outro lado, o jornal mantém um caderno semanal sobre saúde: o
Vida, que circula aos sábados, com oito páginas, e traz
reportagens, notícias e notas sobre doenças, seus sintomas, prevenção,
diagnóstico e tratamento, hábitos saudáveis, pesquisas científicas,
literatura e eventos na área.. O caderno possui um Conselho do
Leitor, cuja análise sobre o conteúdo das matérias é publicada
uma vez por mês. Também mensalmente, divulga-se, sob o título
Você Faz o Vida, uma relação de assuntos para que os leitores
escolham o preferido, que vai se transformar em pauta para futura
reportagem. A votação ocorre exclusivamente pela internet.
A
reportagem que é chamada na capa do caderno e ocupa mais duas
ou três de suas páginas internas além de ser o tema da
coluna Cena Médica, assinada pelo médico e escritor Moacyr
Scliar apresenta a abordagem de um tema sob variados ângulos,
tendo, como fontes, especialistas, autoridades e, eventualmente,
depoimentos de cidadãos, cujas narrativas exemplificam e ilustram
o assunto em foco. Nas quatro edições analisadas, os temas foram
diabetes, doenças do intestino, diálogo entre médicos e pacientes
e autismo este último, reproduzindo tradução de reportagem
originalmente publicada no The New York times. Nas demais
páginas do caderno, são inseridas reportagens com abordagem similar,
embora com menor extensão, e também notas breves.
No
Diário Gaúcho, o tema saúde é recorrente, seja em matérias
inseridas na editoria Dia-a-dia, em dicas reproduzidas
freqüentemente na contracapa do jornal ou nas seções fixas Pergunte
a Quem Sabe (que esporadicamente é dedicada à saúde), Dicas
de Saúde (semanal) e Falando de Sexo (diária). Os textos
oferecem dicas de cuidados (por exemplo, como escovar os dentes
de crianças ou os riscos de roer as unhas). Há outros, mais elaborados,
em que procuram criar laços de identificação com os leitores,
como expressa uma notícia (Diário Gaúcho, 9 mar. 2004, p. 4) sobre
depressão pós-parto, em que é utilizado, como forma de exemplificar
o problema, o caso da personagem Maria Luísa, da minissérie Um
Só Coração, então em exibição pela TV Globo. Nesta situação,
mesclam-se a realidade e a ficção, reforçando uma característica
atribuída por Wisnik (1992) ao jornalismo: a mediação de ilusões.
As fontes destas coberturas incluem especialistas, autoridades
e depoimentos de cidadãos.
Por
fim, os distintos tipos de abordagens adotados pelos dois jornais,
devido às diferenças entre seus públicos, podem ser exemplificados
através de matérias publicadas, em ambos, sobre o mesmo tema:
o aumento dos casos de obesidade e seus riscos para a saúde. Em
Zero Hora, a abordagem recebeu o título e subtítulo "Obesidade:
o novo flagelo americano Problema é a segunda maior causa
de mortes evitáveis nos EUA" (Zero Hora, 10 mar. 2004, p.
25). Já o Diário Gaúcho anunciou: "Obesidade não ameaça
só os ricos" (Diário Gaúcho, 11 mar 2004, p. 4). Enquanto,
no primeiro, o texto girou em torno de um relatório estadunidense
sobre o tema, com dados estatísticos e depoimento de alguns pesquisadores,
o segundo iniciou dizendo que "obesidade não é privilégio
de quem pode comprar guloseimas. Estudos indicam que os menos
ricos estão ficando cada vez mais gordos" e desenvolveu o
texto usando como base uma pesquisa da Universidade Federal de
Pelotas, ouviu depoimentos de cidadãos, explicou como identificar
o grau de obesidade, detalhou qual o tipo de alimentação ideal
e relacionou serviços onde buscar ajuda.
A
partir da análise das matérias, foi possível identificar a predominância
de algumas características comuns na cobertura de saúde feita
pelos dois jornais porto-alegrenses. A primeira delas é a limitação
e a dispersão das informações. Analisado isoladamente, o número
que aponta para a publicação, em um mês, de 193 matérias e quatro
edições de um caderno sobre saúde pode parecer revelar uma cobertura
ampla. No entanto, observa-se que muitas das matérias são breves,
aparecem em forma de notas, sem destaque visual, com poucas fontes
e dispersas na geografia do jornal.
Em
conseqüência, manifesta-se uma segunda característica: a fragmentação
e descontextualização das coberturas. Para Bueno (2003b), "[.
. .] as notícias e reportagens fluem na mídia como peças de um
quebra-cabeças que nunca se completa". Isso foi observado
desde a etapa de classificação das matérias, quando elas foram
facilmente incluídas em uma das categorias estabelecidas. Por
exemplo, as notícias com informações sobre os cuidados com a saúde
não se confundem com aquelas que dizem respeito a políticas e
programas, porque a maioria atém-se a apenas um aspecto: ou
informam sobre um novo projeto governamental para solucionar um
problema de saúde pública ou relatam como prevenir e tratar
este mesmo problema. Da mesma forma, o fato de o poder público
anunciar uma nova iniciativa, na qual serão investidos milhões
de reais para combater determinada doença, não significa que esta
será pauta de uma ampla e esclarecedora reportagem.
O
aspecto fragmentário das coberturas conduz a uma terceira característica:
a publicização de questões que dizem respeito à coletividade como
problemas individuais. As denúncias dos leitores geram coberturas
sobre a precariedade do sistema público de saúde, mas as matérias
têm como foco o problema do cidadão denunciante, que transforma
questões relacionadas a sua intimidade em fatos públicos, expondo
seu sofrimento, suas carências e as humilhações enfrentadas, na
expectativa de ter um problema pontual resolvido. Embora a dificuldade
apresentada por exemplo, não conseguir agendar uma consulta
com especialista seja enfrentada diariamente por centenas
de pessoas, o que motiva a matéria, sensibiliza leitores e mobiliza
autoridades é um caso isolado; o jornal acaba por tratar do problema
daquele indivíduo, cobrar do poder público um posicionamento
sobre aquele caso e, algumas vezes, em uma postura assistencialista,
encontrar a solução para aquele problema específico. Perde-se,
assim, a noção da problemática do sistema de saúde pública como
uma questão coletiva, que precisa ser conhecida e debatida pela
sociedade.
A
última característica diz respeito à maneira como o cidadão está
presente no noticiário. Embora as coberturas de saúde forneçam
informações de interesse do público e sejam veiculadas justamente
em função dele, a presença dos cidadãos nas coberturas jornalísticas
da área é pouco relevante. Seus questionamentos e opiniões não
são freqüentes e, muitas vezes, seus depoimentos são reproduzidos
com a finalidade de gerar repercussões sensacionalistas, à medida
que podem ajudar a vender uma maior quantidade de jornais. No
processo de construção das informações, o papel do cidadão de
sujeito ativo é sobrepujado, pois, quase sempre, é tratado como
vítima à margem das políticas públicas e da sociedade.
6.
Considerações finais
A
cobertura jornalística da área da saúde exerce, no mundo contemporâneo,
um papel importante. Presente na pauta diária dos jornais e até
mesmo em cadernos e seções exclusivas, ela auxilia o leitor a
situar-se e orientar-se em meio ao imenso e complexo universo
de informações que o rodeia.
Apesar
disso, a contribuição do jornalismo em saúde para a formação e
consolidação da cidadania não ocorre em sua plenitude. Assim como
a própria medicina ainda trilha o caminho para tratar da saúde
dos sujeitos de uma maneira mais integral, as coberturas da imprensa
diária podem desenvolver-se para uma abordagem menos parcial da
realidade, que não inclua o cidadão como um consumidor passivo
das informações recebidas, mas como sujeito ativo e construtor
da história e da sua própria existência.
Atuando
como mediadores de informações essenciais para a prática cidadã,
os meios deveriam avançar na reflexão crítica sobre o processo
de produção e veiculação das notícias a serviço da construção
da cidadania, no sentido de uma abordagem voltada não para o fragmento,
mas para o todo, e que privilegie não a espetacularização e a
reificação das informações, mas a prestação de um serviço de interesse
e utilidade públicos. Desta forma, compreendendo que o direito
à informação e o direito à vida podem ser sinônimos, estariam
assumindo uma postura ética e socialmente responsável. Esta postura,
convém ressaltar, ultrapassa a conduta individual dos jornalistas,
desdobrando-se em uma ética dos meios de comunicação.
A
referida ação deve permear, inclusive, os estudos sobre a mídia.
É necessário analisar os meios de comunicação não como um fragmento
da vida social contemporânea, como atores de um processo isolado
e acabado em si mesmo, ou, ainda, como transmissores ativos de
mensagens recebidas por públicos passivos, mas sim como participantes
dinâmicos da vida cotidiana, dotados de uma imensa capacidade
de influenciar e ser influenciados e de construir ou obstruir
a construção e o fortalecimento da cidadania.
Notas
1) Cf. VIEIRA, Liszt. Cidadania
e globalização. Rio de Janeiro: Record, 2001.
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Elisa Kopplin Ferraretto
Mestranda pelo Programa de Pós-graduação
em Comunicação e Informação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul.
Valdir José Morigi
Doutor em Sociologia pela USP, Professor Adjunto em Ciência
da Informação e Professor no PPGCOM/UFRGS.
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