Volume 1
Número 1

20 de dezembro de 2004
 
 * Edição atual    

          A comunicação entre médico e paciente em unidades de emergência: um estudo de caso no Hospital Odilon Behrens

Gilvan Ferreira de Araújo*

          Resumo

          Este trabalho pretende analisar a importância da comunicação para a manutenção do caráter positivo das relações face a face entre médicos e pacientes e, destes, com o estabelecimento de saúde; no caso o Hospital Odilon Behrens (HOB), em Belo Horizonte, e, especificamente, do seu pronto-socorro. O triângulo aqui formado por atores diferenciados - médico, paciente e instituição - tem um vértice comum: todos buscam a promoção da saúde.

          O problema a ser estudado é por que a relação entre médicos e pacientes cria representações de comunicação no pronto-socorro, mostrando atuações muitas vezes divergentes dos atores, para alcançar esse objetivo comum? Uma das hipóteses a ser investigada aponta para o fato da construção da relação entre médico e paciente se dar através de uma imposição sistêmica e institucional do estabelecimento de saúde, impondo regras e procedimentos a serem cumpridos sem a discussão e avaliação dos atores envolvidos. Outro aspecto é o sociocultural, através do qual, cada ator traz sua experiência e coloca-a em disputa no campo da saúde. O médico com seu saber especializado, o paciente com sua enfermidade e a leitura que faz dela e, por último, a instituição que tem o dever de administrar, com base em um sistema geral, as duas primeiras.

          Para a discussão desse problema e das hipóteses aqui apresentadas trabalhamos, dentre outros referenciais teóricos, com os conceitos de «sistema perito» (Giddens, 1991) e o da situação face a face (Goffman, 2003), buscando situá-los à realidade do pronto-socorro do HOB.

          Palavras-chave: face a face; médico; paciente; Odilon Behrens

          Terceiro sinal. Abram as cortinas

          Silêncio, o espetáculo vai começar...

          Um dos mais importantes desafios para a consolidação do SUS está sendo a organização de um sistema de atenção às urgências e emergências que consiga dar respostas eficientes à demanda da população. Essa resposta deve ser entendida não só pela resolutividade de um atendimento técnico correto de medicina e enfermagem, mas também de uma abordagem humanizada ao paciente e seus familiares no ambiente hospitalar, principalmente no pronto-socorro, que é a porta de entrada dos casos de emergência nos serviço de saúde.

          Nesse sentido, entendemos que o estudo da comunicação na situação face a face com o outro, como proposto por Goffman, é, senão o mais importante, o ponto de partida para a investigação das possibilidades e alcance que essa comunicação pode atingir e cumprir no seu papel de também humanizar as relações entre médicos e seus pacientes.

          Nossa proposta é identificar as principais representações construídas na relação face a face e investigar onde e como elas se estabelecem para o médico, para o paciente e para os movimentos sociais representativos, como o conselho local e o sindicato dos trabalhadores. E assim, analisar, por exemplo, se propostas como a do "Projeto Posso Ajudar?" (que falarei mais adiante) contribuem na criação ou cancelamento de tais representações ou, ao contrário, ajudam a manter a «máscaras» (refiro-me a Goffman), calcificando tais imagens e, consequentemente, causando mais distanciamento do que a aproximação de médicos e pacientes.

          Com uma média de 500 atendimentos de urgência e emergência por dia, o pronto-socorro do Hospital Municipal Odilon Behrens (HOB), em Belo Horizonte, se constitui num sistema perito, conforme anunciado por Giddens, sendo referência não só para os habitantes da capital mineira, mas para todos os moradores da região metropolitana de Belo Horizonte (cerca de três milhões de moradores). Nessa realidade, o HOB (o maior hospital conveniado ao SUS em Minas Gerais em número de AIHs absoluto) se propôs a trabalhar um atendimento mais humanizado das enfermidades, criando os Projetos Posso Ajudar? e de Humanização e Acolhimento no Pronto-Socorro, além de iniciar a implantação da gestão colegiada.

          Desde 1994, ao começar a trabalhar com comunicação na saúde pública, podemos comprovar que a informação é um instrumento crucial na relação entre os atores que trabalham ou utilizam os serviços do Sistema Único de Saúde - SUS. Durante esses dez anos de experiência em hospitais públicos, como o Hospital Regional de Betim (desde antes de sua inauguração) e o Municipal Odilon Behrens, em Belo Horizonte; e nas secretarias municipais de Saúde de Betim e de Belo Horizonte, podemos acompanhar diversas situações de satisfação e insatisfação de centenas de usuários com o atendimento recebido pelo SUS.

          Esses sentimentos, na imensa maioria das vezes, são gerados por um único motivo: o atendimento dispensado ao paciente pela instituição de saúde e, especialmente, pelo médico durante a consulta com seu paciente. Dos elogios a ameaças, da gratidão ao ódio, todas as emoções são viés desta relação face a face. Desta forma, as manifestações positivas dos pacientes em relação ao atendimento recebido pela instituição são resultado da satisfação de seus anseios e esperança em relação ao que iriam receber e o que de fato receberam. As amarguras e ódio, ao contrário, são frutos da insatisfação e frustração dessa mesma esperança.

          Pela nossa experiência, sabemos que a comunicação, para a manutenção do caráter positivo das relações face a face entre médicos e pacientes e, destes, com o estabelecimento de saúde, tem um papel fundamental. A pirâmide formada por esses três atores - médico, paciente e instituição - tem um vértice comum: todos buscam a promoção da saúde em todos os seus aspectos. Ou seja, nem o médico nem o estabelecimento de saúde querem ações que resultem em fracassos, em número acentuado de óbitos, longa permanência de doentes internados ou dados estatísticos que referenciem a má qualidade da assistência e coloquem em xeque a credibilidade e eficiência dos seus serviços. Da mesma forma, os pacientes buscam a resolusão dos seus problemas e fazem isso em instituições que pareçam (e de preferência que realmente sejam) confiáveis, eficientes e resolutivas. Então, todos querem a mesma coisa: uma saúde pública resolutiva e de qualidade. Todos os atores buscam esta promoção da saúde através de acordos cooperativos (declarados ou não), que têm como pressuposto básico o esforço de todos em ajudar. O paciente tratando de seguir as orientações médicas, os médicos em diagnosticar os problemas de saúde e prescrever o melhor tratamento ao paciente e a instituição em garantir os recursos, infra-estrutura e condições ideais de trabalho para o médico e de assistência ao paciente. Para a formação desses acordos cooperativos, a comunicação tem ação transversal, atendendo ao direito de todos de se fazerem visíveis aos demais, dando voz e vez para suas manifestações, equilibrando as diferenças e desejos de cada ator dentro do processo de construção cooperativa.

          Este papel da comunicação é mais complexo do que se pensa, pois é exatamente através dela que as representações da relação entre médicos e pacientes são criadas e, no caso específico do pronto-socorro, podendo afastar os atores desse acordo cooperativo. A comunicação dá visibilidade à relação entre médico e paciente e, ao mesmo tempo, trabalha para atender às imposições do sistema de saúde e obedecendo as regras da instituição que, por sua vez também seguem as normas do sistema. No caso do Hospital Municipal Odilon Behrens, as normas da instituição buscam atender às exigências do Sistema Único de Saúde - SUS. Outro aspecto que não pode ser ignorado pela comunicação é o sociocultural, através do qual cada ator traz sua experiência e a coloca em disputa no campo da saúde. O médico com seu saber especializado, o paciente com sua enfermidade e a leitura que faz dela e, por último, a instituição que tem o dever de administrar, com base em um sistema geral (SUS), as duas primeiras. A equação desta relação demonstra que há embricamentos muito sensíveis entre os atores e também percepções da realidade e formas diferentes de alcançar o mesmo objetivo. Por exemplo, o médico acredita que a melhor forma de atender o paciente é reduzindo o número de consultas a – no máximo – quatro por hora (1) , mas – ao mesmo tempo – com uma média diária de 500 atendimentos, o Pronto-Socorro não teria condições de atender a todos se tal regra fosse mantida. O resultado dessa equação são filas e serviços de emergência sempre lotados. Na emergência, a lógica não é mais a da quantidade, mas da qualidade prestada na assistência ao paciente. O difícil da equação é encontrar um denominador comum que garanta atendimento eficaz e de qualidade para todos (em grande quantidade), sem longas esperas para o paciente.

          A Comunicação acendendo as luzes do sistema perito

          No campo da saúde pública, na grande BH, o pronto-socorro do Hospital Municipal Odilon Behrens (HOB) se constitui em um «sistema perito" (2) . Giddens explica que o sistema perito integra o conhecimento de especialistas, como os médicos, e isso influencia muitos aspectos do que fazemos de uma maneira contínua. A idéia de Giddens é que, mesmo sem saber exatamente como as coisas funcionam, as pessoas leigas depositam sua confiança. Assim, por exemplo, o prédio onde moro, mesmo não conhecendo de arquitetura ou engenharia civil, confio que sua estrutura é sólida e não vai cair. Em um pronto-socorro, mesmo não conhecendo de medicina, confio nos médicos que alí estão, e como diz Giddens: "tenho fé que eles entendem de medicina".

          Esta confiança do paciente no médico é, em parte um artigo de fé. Para Giddens, "há um elemento pragmático na fé, baseado na experiência de que tais sistemas geralmente funcionam como se espera que eles o façam". Para proteger esta fé, segundo Giddens, existem forças reguladoras além e acima das associações profissionais com o intuito de proteger os usuários de sistemas peritos. No HOB, a criação dessas forças reguladoras podem ser divididas em duas partes. A primeira diz respeito àquelas diretrizes e leis do próprio Sistema Único de Saúde – SUS – e a outra são aquelas criadas dentro da própria instituição ou estabelecimento de saúde.

          No HOB a imagem do especialista é reforçada. O médico dentro do hospital é como um executivo dentro de uma empresa. Ele é visto como a figura que detém o maior conhecimento de saúde. Sua imagem, mesmo nas raras vezes em que não está vestido com roupas brancas, traz sempre "adereços" que o destingue dos demais profissionais, como o estetoscópio enlaçado ao pescoço ou sua maleta com kit de primeiros socorros. A imagem do médico se confunde com a própria imagem da medicina e não é preciso muito esforço para entender que esta imagem está associada à cura de doenças. Assim, o médico é visto como aquele especialista que detém o saber da cura de doenças.

          Associado à sua imagem, existem comunicações verbais que reforçam o "poder" do médico dentro de um hospital. A primeira delas e a mais evidente é a referência ao médico como doutor (3). Embora a referência não esteja incorreta, a palavra doutor é carregada de um valor conotativo de sabedoria, ou seja, de um conhecimento muito além do normal. Para o paciente do SUS, cujo perfil da maioria se localiza na base da pirâmide sócio-econômica, com grau de escolaridade primário e baixa qualidade de vida e saúde, o médico se torna praticamente um "deus". A distância entre os saberes, toda a simbologia criada em torno da figura do "doutor" e o momento de desespero e dor se tornam ingredientes perfeitos para o estabelecimento de que o pronto-socorro do hospital é de fato um espaço perito.

          Mas, então o que acontece no processo de interação face a face entre o médico e o paciente para provocar conflitos, agressões (físicas e verbais) a ponto daquele sujeito antes visto como "deus" se tornar um homem comum?

          Segundo Erving Goffman, a revelação dos diferentes tipos de segredo pode ameaçar uma representação de diversas maneiras. Os segredos chamados "indevassáveis", "estratégicos" e "íntimos", segundo Goffman, quando são desvendados fazem com que os elementos do grupo que não participam do segredo se sintam excluídos e insultados.

          Para Goffman, existem dois tipos de revelação de segredos. O primeiro é o que se poderia chamar de segredos "depositados em confiança". Este é o tipo de segredo que o possuidor se sente obrigado a guardar por causa de sua relação com a equipe à qual o segredo se refere. Assim, no caso deste nosso estudo, o médico não revela seus segredos por um pacto com a classe a que pertence. Daí a expressão "máfia de branco" atribuída por outras categorias para denominar a fidelidade dos médicos aos seus pares, mesmo quando existem evidências de erros ou negligência por parte de algum.

          O segundo tipo de informação sobre os segredos de outrem pode ser chamado de "livre". Este tipo de segredo, de acordo com Goffman, é aquele conhecido por outra pessoa, que poderia revelá-lo sem desacreditar a imagem que apresenta de si próprio. Desta forma, diz Goffman, "uma equipe cujos segredos vitais sejam possuídos por outra se esforçará para obrigar os possuidores a tratar estes segredos como segredos que lhes são confiados e não como livres". Mas Goffman chama atenção para o fato de que nem todas as informações destrutivas se encontram nos segredos, como por exemplo, os gestos involuntários.

          Na interação face a face, o médico, ocupado com seus procedimentos técnicos diante de um paciente com risco eminente de morrer, pratica diversos atos involuntários durante sua atuação. Estes atos são muitos vezes percebidos por outros atores (como equipe de enfermagem ou acompanhantes mais atentos), mas nem sempre revelados.

          Um exemplo destes atos involuntários está caracterizado na falta de higiene no contato físico com o paciente. Calçar uma luva sem fazer a correta assepsia das mãos é uma das causas mais comuns de infecções hospitalares. A simples troca de luvas ao mudar de paciente, não garante – de forma alguma – a assepsia necessária. Segundo normas da medicina, todo profissional deve antes lavar as mãos corretamente com substâncias químicas apropriadas e, só depois, calçar as luvas, cujo ato também impõe técnicas.

          Fatos como esse passam desapercebidos pela maioria. Para Goffman, a platéia sabe o que lhe é permitido perceber, capacitada por aquilo que pode captar, de maneira não oficial, por uma observação mais apurada. Resumindo, explica Goffman, "conhece a definição da situação alimentada pela representação, mas não possui informação destruidora a respeito dela. Os estranhos nem conhecem os segredos da representação, nem a aparência de realidade que ela cria".

          Por isso é comum as críticas e reclamações a respeito do atendimento no pronto-socorro e em outros setores do HOB serem feitas por acompanhantes de pacientes que ficam em tempo integral a observar todos os movimentos, tanto do paciente quanto da equipe médica. Apesar de não conhecerem os procedimentos médicos, esses usuários não abrem mão do direito ao cuidado e, a qualquer gesto estranho, vão em busca da explicação imediata. Se a informação não satisfaz, partem para a denúncia na tentativa de chamar a atenção para o fato.

          Para tentar interpretar melhor as queixas e orientar seus pacientes, o HOB criou o "Projeto Posso Ajudar?". O projeto começou a ser implantado em setembro de 2002, através de uma parceria entre o hospital e uma instituição de ensino superior. O "Posso Ajudar?" recebe estagiários de diversos cursos da graduação, que trabalham na orientação de pacientes e acompanhantes dentro do pronto-socorro. Interrompido no início de 2003, o projeto foi retomado em 1º de agosto daquele mesmo ano, com previsão de recursos para sua manutenção até o final de 2004.

          A abordagem dos estudantes aos pacientes e acompanhantes no pronto-socorro do hospital é feita pessoalmente, mas ainda não existe nenhuma avaliação sobre sua eficiência na proposta de humanização e melhoria do fluxo de informações aos usuários do HOB. Por outro lado, não é possível afirmar – com certeza – que o "Posso Ajudar?" tenha uma função comunicacional que ajude na aproximação e na interação entre médico e paciente. É possível que o projeto funcione mais como um distanciador desta relação do que um facilitador, ou uma contra face na relação entre médico e paciente.

          Como ficam em contato direto com todos os atendimentos realizados no pronto-socorro, é possível que – gradativamente – os estagiários assumam uma postura institucional, esquecendo a imparcialidade de sua atuação e começem a representar como a equipe de saúde. Por isso, é evidente que os usuários do pronto-socorro interpretam a atuação dos estagiários da mesma forma que a dos demais profissionais. O "Posso Ajudar?" se tornou mais um meio de comunicação institucional do que um real facilitador de informações para os usuários. Isso se deve, em grande parte, à forte influência do pronto-socorro em todo o ambiente hospitalar.

          O pronto-socorro do HOB, pela sua importância e perfil dentro do sistema hospitalar, é um termômetro das relações entre médicos e pacientes e desses com a instituição. Se a insatisfação se instala junto aos médicos do pronto-socorro, todo o restante dos trabalhadores do Hospital é influenciado. Na última discussão salarial, em maio deste ano, por exemplo, somente os médicos do pronto-socorro fizeram paralisação de 12 horas. Foi o suficiente para que nos dias em que se seguiram houvessem manifestações de enfermeiros, auxiliares e técnicos de outros setores exigindo melhores condições de trabalho e aumento de salário. Sem entender seu papel neste processo, pacientes continuaram chegando da mesma forma à porta do pronto-socorro e a relação entre médico e paciente ficou ainda mais delicada.

          O pronto-socorro do HOB é caracterizado pelo SUS como um serviço de "porta aberta", ou seja, um estabelecimento onde são atendidos todos os pacientes que lá chegarem, sem nenhuma distinção de raça, credo, posição sócio-econômica ou política. Mas muitos casos que chegam ao pronto-socorro não são caracterizados como urgência ou emergência. A porta aberta - então - começa a se fechar. É aí que entra a encenação.

          A face mais tensa da encenação em dois atos

          "A realidade da vida cotidiana contém esquemas tipificadores em termos dos quais os outros são apreendidos, sendo estabelecidos os modos como lidamos com eles nos encontros face a face». (Berger e Luckman, 2003)

          A chegada de pacientes até o pronto-socorro do HOB acontece por diversas formas. A mais comum é aquela que o paciente chega trazido por um parente ou amigo, em carros de vizinhos, ônibus ou de taxi. Depois, os serviços oficiais de resgate e ambulâncias representam a segunda maior forma de acesso ao hospital.

          Ao chegar, cada paciente (em condições de falar) é entrevistado por um "médico coordenado (4) " que avalia o risco do paciente. É este médico, nesta hora, que faz a triagem dos pacientes, segundo um mapa de risco que tem quatro níveis: 1 para emergências, 2 para urgências, 3 para encaminhamentos rápidos e 4 para não urgência. O mapa, que também tem cores diferenciadas para cada nível, faz parte da proposta de implantação de um sistema mais humanizado e de acolhimento no pronto-socorro.

          No momento da triagem, vale tudo. Do lado de dentro do balcão, o médico busca – de acordo com sua experiência e conhecimentos profissionais – analisar rapidamente a situação apresentada por cada paciente e situá-la no mapa de risco. Do outro lado, o paciente e/ou seu acompanhante fazem de tudo para convencer o médico de que sua situação é urgente. De pedidos e clamores a ameaças e agressões de fato, tudo é feito para garantir o atendimento. Em meio a tanta dramaticidade, fica muito difícil saber quem está falando a verdade.

          É o primeiro momento da interação face a face entre médico e paciente. Do lado de dentro do balcão (em nível mais alto, cerca de 30 centímetros) fica o médico sempre vestido de branco e detentor do saber. Do outro lado, pessoas pedindo ajuda para seus problemas de saúde. A porta aberta do sistema perito não é tão de livre acesso quanto se pensa. Existem símbolos que se traduzem em fechaduras e cadeados no inconsciente tanto do médico quanto do paciente. Estes símbolos começam a aparecer logo na entrada, onde diversas ambulâncias, com suas sirenes ligadas, chegam e saem a todo instante transportando doentes e, principalmente, vítimas de acidentes de trânsito ou de agressões com armas. Depois, a visão de várias pessoas sentadas a espera de um parente ou amigo que está sendo atendido lá dentro e ainda a circulação, muitas vezes apressadas, de pessoas vestidas de branco, outras deitadas em macas vigiadas por seus acompanhantes e curiosos sempre puxando um papo para saber da tragédia do outro, ávidos por uma historinha trágica para comparar com a sua e atenuar seu sofrimento. As feições dos rostos demonstram sempre tensão, cansaço e tristeza. Quando algum fala mais alto, todos olham em um misto de desaprovação e curiosidade. Tudo está ali, naquele espaço e naquele tempo. Todas as representações, da comédia a tragédia, os dramas da vida cotidiana com todos os seus atores reais.

          Para Goffman, o estudo da representação deve começar por uma espécie de inversão e exame da própria crença do indivíduo na impressão de realidade que tenta dar àqueles entre os quais se encontra. Ou seja, o indivíduo faz sua representação e dá seu espetáculo para sustentar o seu papel, construir a sua imagem e manter viva a interação com o outro. Para Goffman existem duas extremidades nesta representação. A primeira é a de que o ator pode estar inteiramente compenetrado de seu próprio número. "Pode estar sinceramente convencido de que a impressão de realidade que encena é a verdadeira realidade". E a Segunda, em outro extremo, verificamos que o ator pode não estar completamente compenetrado de sua própria prática.

          O primeiro extremo Goffman chama de «sincero» e o segundo de «cínico». Neste trabalho, é o segundo exemplo que mais nos interessa. O extremo que Goffman descreve como sendo aquele « quando o indivíduo não crê em sua própria atuação e não se interessa em última análise pelo que seu público acredita». Mas como Goffman, também queremos deixar claro que não estamos aqui nos referindo a atores cínicos que estejam sempre interessados em iludir sua platéia, tendo apenas o interesse pessoal e o lucro como finalidade. Um indivíduo cínico pode enganar o público pelo bem da comunidade.

          As situações apresentadas por Goffman neste caso não deixam dúvida. Diz o autor:

          «Sabemos que, em funções de serviços, os profissionais, que em outras condições são sinceros, vêem-se forçados às vezes a iludir os fregueses, pois estes mostram grande desejo disso. Os médicos que são levados a receitar medicamentos inócuos para tranquilizar os doentes, por exemplo». (Goffman, 2003).

          As representações descritas por Goffman podem ser comprovadas no dia-a-dia do pronto-socorro do HOB. Não são raros os casos em que médicos, para atender à necessidade do paciente, se vêem forçados a receitar medicamentos que não modificam em nada a sua situação clínica, mas que têm uma função de dar resposta à ansiedade e ao diagnóstico do leigo de que ele possui alguma enfermidade.

          Pequenas dores e desconfortos chegam ao setor sob o aspecto da dramatização dos pacientes que, para garantirem o atendimento do (perito) especialista, encenam males dos mais diversos. Assim, uma simples dor de cabeça pode se transformar, no contato com o "médico coordenador", em algo muito maior e mais sério do que na verdade é. Como um primeiro diagnóstico não é capaz de detectar se o relato do paciente é verdadeiro ou não, o "médico coordenador" recorre ao mapa de risco, fazendo uma breve leitura do caso com base em sua experiência e sempre justificando suas decisões com base nas teorias da medicina e no princípio de equidade (5) do SUS, reforçando a idéia do «sistema perito». Mais uma vez, a relação entre pessoas (6) se apresenta como o início da relação face a face que irá se desencadear em todo o processo de atendimento dentro desse sistema.

          Por outro lado e, ao mesmo tempo, o médico busca acentuar sua posição e reforçar sua autoridade como o perito desse sistema e, não rara as vezes, procura passar a imagem de que o seu saber pode interferir no destino do paciente. Ou seja, mesmo sem ter certeza do diagnóstico a ser fechado, o médico não deixa transparecer sua insegurança ou incerteza. Para ele, o mais importante, é passar uma imagem de um especialista detentor dos conhecimentos que podem curar outra pessoa. Ele, naquele momento assume a autoridade e a responsabilidade da verdade, com base em suas teorias e experiências. Ele é o guardião da porta aberta. Assim ele garante sua posição privilegiada de perito dentro do sistema que dá a ele suporte para sua ação: o mapa de classificação de risco.

          Passada a fase da entrada, é hora de partir para o segundo ato: a consulta. Neste momento, médico e paciente tentam ser o mais sincero (Goffman) um com o outro. Mas, mesmo nesta interação face a face percebemos que os atores não são totalmente verdadeiros. O médico busca saber o problema de saúde do paciente e fechar logo o seu diagnóstico, receitar os remédios que para ele resolverão o problema ou pedir exames para melhor avaliar o caso. O paciente, sempre mantendo uma certa distância do médico (que muitas vezes nem olha para o paciente) anseia por uma resposta cabal para os seus problemas. Muitos querem apenas o atestado médico para justificar a falta ao serviço, outros procuram o hospital nos horários de refeições alegando problemas de saúde dos mais diversos que se resolvem com um simples medicamento: um prato de comida. Outros querem ser ouvidos por alguém que acreditam saber a resposta para todos os problemas que afligem o corpo e a mente. Afinal, estão ali, dentro do espaço especializado em saúde e de frente com aquele que detém os maiores conhecimentos sobre o assunto. De repente o paciente levanta a voz, fica nervoso e sai apressadamente chamando a atenção de todos. Afinal, o que aconteceu?

          Para Goffman, a compatibilidade entre função, informação possuída e regiões acessíveis raramente é completa. "Aparecem novos pontos de observação relativos à representação que complicam a simples relação entre função, informação e lugar" (Goffman, 2003). O paciente sabia que não tinha o problema clínico que representava. O médico também. O problema é quando um dos dois resolve revelar o segredo de ambos. É o "delator" como diz Goffman. Aquele que finge para os atores ser parte da peça, mas que se desvia do seu papel e muda toda a cena. O que resta ao outro, senão atuar de forma mais convincente na tentativa de atrair a simpatia da platéia? Nesta arena, médico e paciente encenam com os talentos que têm. O médico mantém sua postura de perito e o paciente de coitado. Os processos comunicacionais se movimentam de maneira dinâmica e criam diversas interpretações, seja pela observação da platéia e suas conclusões e discussões entre si, seja pelas atuações dos atores. O que for mais verdadeiro na avaliação da atenta platéia, recebe os aplausos e a aprovação. Nesses processos de desvelação quem – na maioria das vezes – sai ganhando é o médico, pois na platéia, todos querem estar diante dele como aquele ator que acabou de sair de cena, mas com a esperança de um final feliz.

          E o espetáculo não pode parar...

          Último ato – fechando as cortinas

           "Quando a atividade de alguém se passa na presença de outras pessoas, alguns aspectos da atividade são expressivamente acentuados e outros, que poderiam desacreditar a impressão incentivada, são suprimidos. É claro que os fatos acentuados aparecem naquilo que chamei de região de fachada; deveria ser igualmente claro que pode haver outra região – uma região de fundo ou dos bastidores – onde os fatos suprimidos aparecem" (Goffman, 2003:106)

          Arquétipos como dor e morte continuam sendo construídos livremente nas mentes dos pacientes. Por outro lado, os médicos também buscam construir representações que traduzam a situação de seus pacientes e, ao mesmo tempo, aliviem suas tensões em lidar cotidianamente com sofrimentos, angústias e exigências além de suas capacidades aparentes. Desta forma, surgem representações como «jacaré» para definir aqueles pacientes deitados em macas no pronto-socorro, de olhos bem abertos e sem informações objetivas sobre seu estado clínico. "Piscinão de Ramos" ou "barracão" para caracterizar as salas de triagem ou da internação masculina da emergência sempre lotadas de "pobres".

          A idéia é trabalhar a Saúde não como um produto de consumo, como define Kotler (1998). Mas na óptica de Weber que diz: «Mesmo tratada como bem de consumo, a saúde mantém seu poder de ser ouvida em qualquer instância» (Weber, 1995).

          Sob a visão do marketing, a Saúde tratada como produto reconstrói, de forma simultânea, a percepção social da doença como mercado e necessidade, como demanda e produto. Já sob a óptica do discurso político, a saúde é um direito e não um bem de consumo.

          Ribeiro e Souza (1995) garantem que as oportunidades abertas pelas novas tecnologias de informação e comunicação são inúmeras; mas alertam:

          "... talvez exijam, para alcance do seu pleno uso social, o desvendamento de projetos simples que não desconheçam o saber popular – envolvido, concretamente, no enfrentamento da doença e em concepções de saúde – e nem as carências de informação que atormentam a vida cotidiana, principalmente nas grandes cidades". (Ribeiro e Souza, 1995)

          O Programa HumanizaSus (7) , implantado em todo o Brasil pelo Ministério da Saúde em março de 2004, entende a humanização como a «valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde: usuários, trabalhadores e gestores. Segundo o ministro da Saúde, Humberto Costa (2004), «Os valores que norteiam esta política são a autonomia e o protagonismo dos sujeitos, a co-responsabilidade entre eles, o estabelecimento de vínculos solidários e a participação coletiva no processo de gestão».

          "Um dos aspectos que mais tem chamado a atenção quando da avaliação dos serviços é o despreparo dos profissionais para lidar com a dimensão subjetiva que toda prática de saúde supõe. Ligado a esse aspecto, um outro que se destaca é a presença de modelos de gestão centralizados e verticais desapropriando o trabalhador de seu próprio processo de trabalho". (Humberto Costa, ministro da Saúde do Brasil, 2004).

          A visão do ministro é correta e, em nossa perspectiva, analisar como a construção das relações acontecem e a que ponto a intermediação da comunicação entre médicos e pacientes pode ser útil para a melhoria da qualidade desta relação é crucial. Nesse processo de construção, trabalhamos com a perspectiva de que o "Projeto Posso Ajudar?" impõe mais barreiras do que soluções entre estes atores. Os estagiários desconhecem diversas informações levantadas pelos usuários, como horário dos médicos, o que é uma cirurgia de grande porte em relação a uma de médio porte. A pergunta "posso ajudar?" estampada no jaleco não atrai os usuários que vêem no estagiário mais um funcionário da instituição. O usuário não se reconhece no estagiário jovem, saudável, sorridente e intelectualizado. Pessoas da comunidade circunvizinha poderiam desempenhar a função com muito mais eficiência.

          Talvez o caminho seja promover a discussão com base em categorias: médicos, pacientes e entidades constituídas. Isto possibilitaria trazer um novo olhar para a discussão sobre a contraposição do qualitativo e quantitativo no atendimento do pronto-socorro do HOB. "As categorias constituem importantes estratégias linguísticas estando presentes na própria organização da linguagem (verbal, escrita, gestual, icônica). Utilizamos categorias para organizar, classificar e explicar o mundo. Falamos por categorias". (Spink, 2000),

          A comunicação mal trabalhada, sem planejamento, aliada à falta de informações, pode gerar diversos problemas. Os mais recorrentes são a violência contra médicos e desses contra seus pacientes, estresse elevado, depressão, angústia, irritabilidade e descontentamento dos dois lados. Não raro, a consequência de tais situações vão parar na Justiça.

          Apesar de ter 60 anos de existência (o HOB foi inaugurado no dia 30 de março de 1944), o pronto-socorro do Hospital Municipal Odilon Behrens foi inaugurado há 13 anos.

          Apesar da proposta de se colocar como um mediador do processo de interação entre médico e paciente, o "Projeto Posso Ajudar?" se traduz num discurso institucional, sem levar em consideração a construção social de sua proposta. Desta forma, sua aparência é uniforme e não coletiva. Os pacientes não se vêem representados e não querem ser apenas passivos no processo de comunicação.

          A discussão com órgãos representativos dos usuários (pacientes) e da comunidade se faz necessária para a legitimação do caráter verdadeiramente humanizado da assistência à saúde. Bem como, a construção de alternativas que contemplem as necessidades práticas e estruturais dos trabalhadores, passando aí, pela discussão das condições de trabalho, salários e gratificações, além de um plano de evolução da carreira (que ainda não existe no hospital).

          É preciso trabalhar ações que coloquem todos os atores do mesmo lado. Pacientes, médicos, conselho local e gestores precisam falar a mesma língua; estabelecer um fluxo mais fácil de comunicação que leve em consideração – prioritariamente – o aspecto subjetivo das relações entre médico e paciente. Assim, o entendimento da dor não será puramente técnico, nem a simulação de sua existência uma forma do paciente se fazer enxergar como cidadão.

          Ouvir antes de agir; acolher antes de rejeitar e entender o outro como algo mais complexo do que a biologia do corpo humano é o maior desafio. Assim, estaremos construindo não uma relação que privilegie o EU ou o OUTRO, mas o NÓS presente o tempo todo na cena da saúde pública.

          Fim do espetáculo!

          Notas

          1) O número de quatro consultas por hora não é previsto em lei mas, em Belo Horizonte, um acordo entre médicos e Secretaria Municipal de Saúde, em 1996, fez valer esta norma para Centros de Saúde. A regra não vale para UPA´s e Pronto-Socorro, entretanto os médicos do HOB tentam impor o número de quatro atendimentos por hora alegando que a Triagem do Pronto-Socorro não atende casos de emergência e sim consultas típicas de unidades básicas de saúde.

          2) O «sistema perito»(expert Sistems), conforme descrito por Anthony Giddens (As Consequências da Modernidade, 1991: p.29-37) como «sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje».

          3) Segundo Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, doutor deriva do latim doctu que significa aquele que aprendeu muito, muito instruído, erudito, sábio: o douto acadêmico. 2. Que denota erudição, sabedoria: doutas palavras. Doutor é 1. Aquele que se formou numa universidade e recebeu a mais alta graduação desta após haver defendido tese em determinada disciplina literária, artística ou científica. 2. Aquele que se diplomou numa universidade Cf. licenciado e mestre 3. Médico, esculápio (deus da medicina na mitologia greco-romana).

          4) O médico coordenador é o médico-chefe de plantão no pronto-socorro. É ele que atende aqueles casos em que a recepcionista (que não tem formação em saúde) não consegue avaliar (enxergar) a queixa do paciente, como dor por exemplo.

          5) No vocabulário do SUS, equidade diz respeito aos meios necessários para se alcançar a igualdade, estando relacionada com a idéia de justiça social. Condições para que todas as pessoas tenham acesso aos direitos que lhe são garantidos. Para que se possa exercer a equidade, é preciso que existam ambientes favoráveis, acesso à informação, acesso a experiências e habilidades na vida, assim como oportunidades que permitam fazer escolhas por uma vida mais sadia. O contrário é inequidade, e as inequidades no campo da saúde têm raízes nas desigualdades existentes na sociedade. (Documento base para Gestores e Trabalhadores do SUS. Política Nacional de Humanização – PNH – 2004)

          6) «Não é provavelmente um mero acidente histórico que a palavra ‘pessoa’, em sua acepção primeira, queira dizer máscara. Mas, antes, o reconhecimento do fato de que todo homem está sempre e em todo lugar, mais ou menos conscientemente, representando um papel... É nesses papéis que nos conhecemos uns aos outros; é nesses papéis que nos conhecemos a nós mesmos». (Goffman citando Robert Ezra Park. A representação do Eu na vida cotidiana. p. 27 - 2003)

          7)  www.saude.gov.br/humanizasus

          Bibliografia

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GIDDENS, Anthony. As Consequências da Modernidade. Unesp. São Paulo, SP. 1991.

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Gilvan Ferreira de Araújo
Professor da Universidade Federal de Minas Gerais.

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