Volume 1
Número 1

20 de dezembro de 2004
 
 * Edição atual    

          A ansiedade infantil e a audiência aos programas violentos da televisão

Juliana Pires*

          Resumo

          Este artigo refere-se à pesquisa qualitativa realizada com crianças com idade entre sete e nove anos, que apresentam níveis extremos (alto e baixo) de ansiedade. O objetivo central da pesquisa foi analisar a relação entre audiência a conteúdo violento da TV e graus de ansiedade. Buscou-se compreender de que maneira as crianças que estão na fase da segunda infância, período de latência, respondem aos conteúdos violentos da televisão, além do entendimento de como a audiência ocorre e de que forma o contexto social, familiar e de hábitos de audiência, interfere na relação ansiedade e conteúdo violento.

          Palavras-chave: ansiedade infantil, audiência, violência na TV

          Introdução

          A ansiedade é um estado emocional desagradável em que as ameaças e os perigos para a vida do indivíduo são vividamente antecipados. As crianças, em conseqüência de uma grande quantidade de ajustamentos e decisões que devem tomar e por sua imaturidade e falta de experiência, são mais suscetíveis a essa perturbação emocional. As tensões que geram mudanças fisiológicas, falta de confiança própria, ameaça e indecisão resultam em ansiedade. Uma pessoa que sente ansiedade intensa fica aterrorizada e transpira profundamente; seu coração se acelera. Esse estado de quase-pânico desaparece em duas ou três horas.

          Levando-se em consideração as três etapas da segunda infância, segundo a teoria do desenvolvimento cognitivo, observa-se que as crianças mais suscetíveis a níveis extremos de ansiedade estão no período de latência, quando crescem e aprendem a adaptar-se a um ambiente que cada vez mais se amplia. É nesta fase que ocorre a diferenciação entre a fantasia e a realidade e mais do que isso, a formação da personalidade. Portanto, altos ou baixos níveis de ansiedade podem ser prejudiciais ao desenvolvimento das crianças.

          Um componente importante da vida das crianças no período de latência é a televisão. O interesse é muito grande, já que a televisão faz parte da vida e o conteúdo violento dos programas é visto de forma habitual pelos pequenos espectadores. A situação torna-se mais grave por tais imagens serem acessadas, de maneira fácil demais por este tipo de público.

          Assim, levando em consideração a audiência das crianças ao conteúdo violento na televisão, e a ansiedade que pode se manifestar de forma prejudicial na infância, a presente pesquisa pretende analisar a relação entre audiência a conteúdo violento e graus de ansiedade. Muitas dúvidas persistem: Como as crianças reagem quando expostas ao conteúdo de imagens violentas na televisão? A violência na televisão aumenta a ansiedade ou pelo contrário, ameniza esta emoção? Quais tipos de reações ansiosas as crianças apresentam quando expostas à violência da televisão?

          Especificamente, a investigação que se pretende é compreender de que maneira crianças da segunda infância respondem aos conteúdos violentos da televisão procurando-se entender como a audiência ocorre e de que forma o contexto (social, familiar e de hábitos de audiência) interfere na relação ansiedade e conteúdo violento.

          Metodologia

          Por ser o tema da ansiedade no contexto da comunicação relativamente pouco estudado, o importante nesta etapa do conhecimento é o entendimento de como, em que circunstâncias e com quais grupos a ansiedade se relaciona com a audiência aos conteúdos violentos.

          A presente pesquisa é, portanto, de natureza qualitativa, com base na observação. A técnica de pesquisa é o estudo de caso, tendo na observação direta sua principal fonte de dados.

          A hipótese orientadora deste trabalho é a procura de relações entre a ansiedade e a audiência ao conteúdo violento na televisão. Esta possível relação e seus efeitos serão estudados no contexto das características individuais e familiares de crianças que estão na fase intermediária da segunda infância, o período de latência.

          Não há, portanto, a formulação de hipóteses empíricas a serem testadas. A hipótese com que se vai trabalhar é a hipótese geral orientadora da busca de informações focalizando: hábitos de audiência; níveis de conteúdo violento comumente assistidos; contexto social e familiar das crianças.

          A pesquisa foi dividida em duas etapas, que permitiram observar a relação entre o comportamento ansioso no momento em que as crianças assistiam ao conteúdo violento na televisão e quais foram as reações posteriores das mesmas, ou seja, o que aconteceu com os indivíduos após a exposição ao conteúdo selecionado. As técnicas utilizadas foram a observação e a entrevista em profundidade com as crianças e os responsáveis (mães, pais e avós).

          As crianças selecionadas para a pesquisa têm idade entre sete e nove anos, portanto estão, segundo a teoria do desenvolvimento cognitivo, na segunda fase de infância, período de latência. Todas são moradoras da cidade de Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra, situadas na região da Grande São Paulo, a aproximadamente 30Km e 40 Km da cidade de São Paulo.

          Para haver equalização de classes sociais, optou-se pelo recrutamento das crianças em escola particular e municipal. A amostra é constituída de duas crianças de classe social A, quatro crianças de classe social B, quatro crianças de classe social C, três crianças de classe social D e uma de classe social E.

          A amostragem, portanto, é uma amostragem intencional fundamentada na necessidade teórica de observação de crianças com diferentes níveis de ansiedade, porém tendo o cuidado de selecionar crianças de todas as classes sociais. Além de abranger várias classes sociais, é composta por crianças com níveis extremos (alto e baixo) de ansiedade, pois somente assim a observação pode revelar as diferenças de reações ao conteúdo violento da televisão.

          Os instrumentos utilizados para a seleção dos participantes foram dois: o roteiro de observação e a escala de Ansiedade Manifesta de Crianças (Revised Children´s Manifest Anxiety Scale: RCMA; Reynolds & Richmind, 1978).

           Todas as crianças que participaram da pesquisa responderam integralmente a esta escala. Por meio da pontuação de cada respondente, pôde-se verificar o grau de ansiedade desenvolvido. A escala foi validada de acordo com a Escala de Ansiedade Manifesta – Forma Infantil – elaborada por Taylor e adaptada para crianças nos Estados Unidos por Castaneda, McCandless e Palermo, e no Brasil por Almeida, Pfromm e Rosamilha, em 1963.

          A correlação entre a RCMA (Escala de Ansiedade Manifesta) e a Escala de Taylor (que é atualmente o padrão) foi positiva, chegando a 0,89, o que demonstrou a eficácia da escala traduzida e utilizada para medir os diferentes graus de ansiedade nas crianças.

          A aplicação da escala de Ansiedade Manifesta foi realizada em sala de aula, com o auxílio dos professores. Como resultado da aplicação da escala de Ansiedade Manifesta verificou-se que a média de pontuação das crianças (106 no total) foi de 18,4 pontos. A partir deste resultado, calculou-se o desvio padrão 3,37 chegando-se ao valor de corte de 16,7 pontos para as crianças de baixa ansiedade e 20,07 para as de alta ansiedade. As crianças selecionadas, portanto, deveriam somar pontos inferiores a 16,7 e superiores a 20,07 pontos, ou seja, deliberadamente foram escolhidas crianças com graus elevados de alta ou baixa ansiedade.

          Os dados foram captados em duas etapas: observação direta e entrevista. As crianças com níveis extremos de ansiedade foram expostas às cenas de conteúdo violento extraídas da novela Mulheres Apaixonadas. Enquanto assistiam, foram observadas especialmente na expressão facial, movimentos cinéticos e comportamento ativo apresentado.

          Com o objetivo de selecionar cenas violentas transmitidas por emissoras de televisões abertas no Brasil, foram escolhidas duas cenas da novela Mulheres Apaixonadas. Transmitida pela Rede Globo de Televisão no ano de 2003, a novela foi bastante assistida pelas crianças com idade entre quatro e 11 anos, segundo dados do Ibope Telereport, coletados em junho de 2003. Optou-se pela escolha de uma cena em que ocorre violência urbana, com tiroteio e morte de personagens, envolvendo uma família e ladrões e uma segunda cena de violência doméstica, onde acontece agressão física mútua entre um casal.

          Depois de cumpridas as etapas de observação e entrevista, o material foi disponibilizado ao software ATLAS/ti, um programa especialmente utilizado para interpretação de pesquisas qualitativas. Por meio de palavras-chaves subdivididas em categorias, buscou-se relacionar as características em comum, de acordo com os níveis alto e baixo de ansiedade dos participantes.

          Resultados

           Cumpridas todas as etapas da pesquisa qualitativa, tornou-se possível chegar a algumas generalizações sobre o a audiência ao conteúdo violento das crianças de alta e baixa ansiedade. Para facilitar a compreensão dos dados, optou-se pela análise por categorias, que são: ambiente familiar, comportamentos em geral e comportamento televisivo. Nesta categoria, encontra-se a subdivisão: conteúdos mais e menos assistidos, controle paterno, conversa familiar sobre a TV e motivações.

          As reações faciais, cinéticas e comportamentais das crianças enquanto assistiam às cenas violentas também são o tema de uma categoria. Já a reação racional foi dividida em: descrição, que aborda como as crianças interpretaram o que assistiram, contextualização, se sabem a história do personagem ou da cena que acabaram de assistir e valoração, se expressam juízos de valor sobre as imagens violentas. Por último, a reação emocional das crianças refere-se aos sentimentos demonstrados pelas crianças enquanto expostas à TV.

          Os resultados são encerrados com a categoria percepção de realismo, que questiona a crença da veracidade das informações coletadas após a exibição ao conteúdo assistido.

          Conclusões

           A teoria do desenvolvimento cognitivo afirma que as crianças que estão na fase da segunda infância, período de latência, são mais propensas a desenvolver níveis extremos de ansiedade. No entanto, para desenvolver a alta ou baixa ansiedade a criança precisa de estímulos. O ambiente familiar em que vive ou os hábitos de audiência à televisão, por exemplo, são fatores que podem estimular na criança o tipo de ansiedade manifestada. E neste ponto, ressalta-se a violência na televisão. Presente na vida das crianças, os programas violentos estão entre os preferidos das crianças com idade entre sete e nove anos. Daí a importância em se entender o papel dos conteúdos violentos no contexto da ansiedade.

          Enquanto assistiam às duas cenas de conteúdo violento da novela Mulheres Apaixonadas, observou-se a reação facial, cinética e o comportamento ativo das crianças com níveis extremos de ansiedade.

          As crianças com alta ansiedade tiveram comportamento de agito enquanto assistiam às cenas: morderam o lábio, franziram a testa, riram nervosamente, respiraram fundo, arranharam a garganta, chuparam o dedo e seus olhos se encheram de lágrimas. No entanto, uma diferença foi marcante. Quando não quiseram mais assistir à cena, demonstraram comportamento evasivo. Não olharam mais para a televisão, passaram a brincar com o que tinham mais próximo, conversar sobre o que assistiam, uma forma de "fugir" do estímulo. Realizaram movimentos cinéticos intensos e foram muito impacientes, até antes de assistirem às cenas.

          Por outro lado, as crianças com baixa ansiedade, apesar de também manifestarem comportamento de agito e movimentos cinéticos, o fizeram de forma bem mais moderada. Se o primeiro grupo se comportou de maneira evasiva, a grande característica do segundo foi o comportamento apático. As crianças com baixa ansiedade, quando não queriam mais assistir às cenas, ao invés de procurarem meios de "fugir" permaneciam na mesma posição, olhando para as imagens. No entanto, era facilmente perceptível que "sonhavam acordadas".

          Além disso, as crianças com alta ansiedade descrevem a cena como ela aconteceu, com riqueza de detalhes. Diferente foi o tipo de interpretação feita com as crianças com baixa ansiedade. Mesmo as que assistiam à novela tiveram dificuldade em descrever as cenas assistidas. Quando o faziam, era de forma incompleta. Por muitas vezes, as crianças inventavam diálogos e contavam uma história diferente do que viram. Assim, nota-se que as crianças com alta ansiedade apenas descrevem e contextualizam o que acabaram de assistir, enquanto que as de baixa ansiedade encontram dificuldade, mas julgam os personagens e as situações. Isso por não prestarem atenção nas cenas assistidas, embora aparentemente parecessem atentas às imagens.

          Há igualmente diferenças afetivas. Embora julgassem os personagens e as cenas, as crianças com baixa ansiedade pareceram não se importar muito com o que assistiram. Sobre a reação emocional após a exibição das cenas, observou-se que este grupo de criança respondeu de forma apática ao que viu. Já as crianças com alta ansiedade responderam mais emocionalmente ao que assistiram. Quase todas sentiram dó dos personagens e queriam que a cena terminasse logo.

          Há, portanto, um claro padrão de reações diferenciadas. A alta ansiedade está claramente associada a um comportamento tenso, nervoso e de evasão ao que é considerado um estímulo (conteúdo violento da TV) aversivo. Por outro lado, a baixa ansiedade está associada ao reconhecimento do conteúdo aversivo, mas seguido de uma estratégia de desengajamento do estímulo sem provocar, portanto, tensão.

          As crianças com alta ansiedade assistem a menos tempo de televisão diariamente do que as crianças com baixa ansiedade. No entanto, os tipos de programas preferidos pelas crianças dos dois níveis de ansiedade são os mesmos: desenhos violentos e novelas (com ou sem violência). Os desenhos mais citados foram Power Rangers, Meninas Superpoderosas, Tom & Jerry, Dragon Boll, Pica-Pau e as novelas preferidas, Mulheres Apaixonadas, Carinha de Anjo e Viva as Crianças.

          Um diferencial entre as crianças com alta e baixa ansiedade sobre os hábitos de audiência deve ser ressaltado. Mesmo que não gostem dos telejornais, as crianças com baixa ansiedade os assistem com freqüência aos programas como Cidade Alerta, Linha Direta e Jornal Nacional. As crianças com alta ansiedade simplesmente não assistem a estes programas. No momento de transmissão, vão brincar, saem da sala e procuram outra atividade para fazer.

          A criança com baixa ansiedade raramente tem a programação do que assiste na TV controlada. Pelo contrário, ela tem liberdade para escolher o que quer assistir. Os pais das crianças não as controlam por acreditar no discernimento do filho em selecionar o que deve assistir ou simplesmente por falta de tempo. Se há um controle, este é mínimo e acontece com as cenas de sexo e violência. Este controle mínimo talvez explique o fato das crianças com baixa ansiedade preferirem assistir mais filmes violentos do que as crianças com baixa ansiedade.

          Por outro lado, os pais das crianças com alta ansiedade são mais rigorosos quanto ao controle que fazem sobre o uso da televisão para seus filhos. Eles os questionam sobre o tipo de programação que assistem. O autoritarismo é presente. O controle é feito sobre o conteúdo violento e sexual.

          O controle paterno sobre o conteúdo de TV que a criança vê é muito maior nas crianças de alta ansiedade, justamente as que apresentaram respostas menos adequadas ao conteúdo violento. O que poderia estar ocorrendo é que ambiente familiar mais repressivo seja no fundo um dos fatores que geram a própria ansiedade elevada na criança, levando em conseqüência a "necessidade" de maior controle.

          Assim, observou-se que no caso de conteúdo realista (como o apresentado com cenas da vida urbana e familiar), o conteúdo violento não provocou nenhuma atratividade nas crianças.

          Em todos os casos o conteúdo foi considerado desconfortável e aversivo, tendo, portanto sido corretamente "entendido" pelos telespectadores como algo negativo. A grande diferença foi observada no mecanismo de defesa: os de alta ansiedade foram afetados e procuraram a evasão, mais próximo do comportamento de medo e fuga, enquanto que os de baixa ansiedade adotaram uma estratégia de desengajamento como forma de adaptação a esse ambiente.

          A descoberta, portanto, não vai de acordo com os aspectos levantados pelas principais pesquisas sobre o tema de violência na televisão, que procuram resolver ou mesmo abrir novas perspectivas para várias questões sobre o impacto da televisão na vida das pessoas. Rangel (1996) divide as várias tendências da análise do fenômeno em quatro grupos básicos: (a) os que preconizam os efeitos danosos e negativos, baseados na possibilidade de se reproduzir no comportamento real a violência vista na televisão; (b) aqueles que apontam para o efeito catártico da televisão, especulando que a agressividade real se libera no imaginário; (c) aqueles que compreendem o comportamento da audiência sob a perspectiva do entretenimento e de uma experiência estética cultural e, (d) os que estabelecem uma influência construtiva da televisão, sendo considerada, inclusive, como instrumento terapêutico minimizador de respostas negativas.

          Há várias maneiras de explicar estas relações, mas ao observar as crianças com idade entre sete e nove anos, no período de latência do desenvolvimento cognitivo, em que há mais possibilidade em se desenvolver níveis extremos de ansiedade, nenhuma teoria já formulada pode ser utilizada. Pode-se dizer que as crianças com alta ansiedade absorvem com mais facilidade o conteúdo violento, justamente por prestar atenção ao que assistem na televisão (por menor que seja o tempo de exposição). Talvez, para estas crianças há um impacto maior após assistirem o conteúdo violento. O mesmo não acontece com as crianças com baixa ansiedade, pois embora consigam ficar mais tempo expostas ao conteúdo violento da televisão, não prestam atenção ao que assistem, portanto, não retêm a informação.

          Assim, a maneira mais próxima de explicar o impacto da violência na vida das crianças com níveis extremos de ansiedade é aquela que considera que o conteúdo violento não provoca fascínio, havendo, portanto, necessidade de se entender também o grau de ansiedade (e conseqüentes estratégias de recepção) das crianças antes de se afirmar categoricamente uma relação direta entre conteúdo violento e seus efeitos nos telespectadores infantis.

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Juliana Pires
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo.
Orientação: Antônio Carlos Ruótulo, PhD.

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